Início Sinais Vitais Tratar versus Cuidar do Passado para o Presente/Futuro

Tratar versus Cuidar do Passado para o Presente/Futuro

150
0
Revista Sinais Vitais

A arte de escutar não se resume ao acto extremo de ouvir, implica que quem escuta o faça com todo o seu ser e esteja disponível para a totalidade da comunicação.

Sinais Vitais nº80

José Sílvio de Sousa Freitas

Licenciado em Enfermagem.

Susana Patrícia Franco Freitas

Licenciada em Enfermagem.

Resumo

Orientada para o cumprimento de tarefas e prescrições médicas com intuito de curar a doença ou órgão doente, ou seja, Tratar, a enfermeira durante anos, desvalorizou a essência da sua profissão – o Cuidar. Mas, a evolução que se assiste hoje orienta-nos para o cuidar holístico baseado na relação de ajuda, na atenção ao outro, na escuta, na compreensão, no respeito, em todos os pequenos gestos que ajudam a conduzir a Pessoa ao seu bem-estar.

Palavras Chave: Tratar; Cuidar; Cuidados de Enfermagem; Relação de Ajuda; Comunicar

INTRODUÇÃO

A enfermagem tem acompanhado o homem desde os primórdios da sua existência, surgindo a partir do momento em que a primeira pessoa cuidou de outra, doente ou ferida. Mas somente no século XIX, com Florence Nightingale, a enfermagem se afirmou como profissão de responsabilidade e de respeito, tendo como essência o Cuidar. Contudo a partir do final do século xix, presenciou-se um grande desenvolvimento tecnológico que direccionava a atenção dos profissionais para a reparação do estado de saúde, tornando o cuidar no tratar da doença (Collière, 1989).

Desde há, sensivelmente, três décadas que a grande expectativa do passado se tornou actual e num objectivo para o futuro. Foi com o aparecimento dos modelos conceptuais que a Enfermagem se afirma como “arte e ciência do cuidar”.

Exige-se, no mundo de hoje, o desenvolvimento de um processo de cuidar que dê respostas às necessidades do Homem, isto é, uma mudança que vise a excelência do saber, do fazer e do ser próprios da enfermeira que desenvolve o seu próprio processo de enfermagem.

Deste modo, a competência necessária ao cuidar converge do saber ser (valores, crenças, convicções, atitudes), do saber em si (conhecimentos, compreensão, análise crítica e síntese) e do saber fazer (habilidades relacionais e técnicas).

Diferentes formas de saber ser, estar e fazer dão origem a dois tipos de abordagem: uma orientada para o “reparar a peça defeituosa” – tratar; outra voltada para o cuidar. A orientação para o Tratar é mais instrumental, relacionada com procedimentos terapêuticos e técnicos e visa a cura. Enquanto que, a orientação para o Cuidar é mais holística, isto é, atende o utente na sua globalidade e visa sobretudo o seu bem-estar (Ribeiro, 1995).

Orientação para o Tratar: um modelo bio-médico.

Os cuidados de enfermagem representam uma ramificação recente da evolução milenária dos cuidados. Em termos históricos, os cuidados foram sofrendo grandes alterações na sua concepção e, consequente, prestação. Desde os tempos mais remotos até à Idade Média foram praticados pela Mulher, passando depois para a mulher consagrada e, só a partir do início do século XX, pela mulher enfermeira, que também, até à actualidade, se modificou (Collière, 1989).

Como já referimos, Nightingale foi quem primeiro abordou o Cuidar como algo de humano, necessário para que a Enfermagem se constituísse como profissão. No entanto, as novas tecnologias, a influência da evolução da ciência médica, a cultura e os valores criados pela profissão, os insuficientes conhecimentos específicos dos enfermeiros, as dificuldades de identificação do campo de enfermagem, as solicitações das sociedades modernas, a ênfase na rentabilidade e utilidade, na cura, nas rotinas marcadas pelos cuidados físicos e tratamentos, na execução de tarefas, a falta de espectaculosidade dos serviços de enfermagem e inúmeras outras razões, conduziram ao profundo laminar da riqueza e essência do cuidar.

Todos estes condicionalismos arrastaram a preocupação dominante dos enfermeiros para o tratar, para a cura da doença/ órgão doente e cumprimento das prescrições médicas, sendo o utente atendido de forma estandardizada e considerado em função da sua doença. Estes factos constituíam a base para a tomada de decisão da enfermeira que, apesar de eficiente privilegiava as tarefas em detrimento da comunicação (modelo bio-médico).

Adoptando esta orientação, a participação do utente era quase nula e os cuidados de enfermagem camuflados pelos cuidados técnicos e físicos – tratamento, higiene, alimentação e arranjo do ambiente. “Nestas condições, a enfermeira distancia-se; tenta resolver os problemas de forma racional; valoriza os aspectos objectivos da situação; e desvaloriza a subjectividade e o sentimento do utente sobre a sua experiência da doença e efeitos dos tratamentos” (Ribeiro, 1995:26).

Orientação para o Cuidar: um modelo holístico

A orientação para o Cuidar radica das ideias de Nightingale (1859), Henderson (1961, 1969), Leinniger (1970), Watson (1988), entre outras. Apela para uma acção centrada no utente como sujeito dos cuidados para os aspectos relacionais e abrange a pessoa e o seu ambiente.

Na tentativa de explicar a orientação para o cuidar surgiram vários modelos alternativos ao modelo biomédico a que se convencionou chamar modelos de enfermagem. Para Pearson e Vaughan (1992, p.14), “o modelo de enfermagem é uma imagem ou representação do que a enfermagem é na realidade”. Assim, se a enfermagem for concebida de forma holística, compreenderemos mais facilmente a relação entre as dimensões biológica, psicológica, sócio-cultural e espiritual do utente. Um modelo holístico ao ser desempenhado por todos os enfermeiros ajuda a assegurar que todos comportem a mesma imagem, os mesmos objectivos e os mesmos conhecimentos na prestação de cuidados, assegurando a continuidade e consistência dos mesmos.

A dimensão “Cuidar” Ser cuidado… Cuidar de si próprio… Cuidar… são as dimensões de uma unidade dinâmica e sistémica, que o tempo tem visto desgastar-se e tornar-se vaga (Fernandes, 1998). Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado, que se integra no ethos (princípios, valores e atitudes) do fundamento humano (Boff, 1999).

Reflexão que conduz a era tecnicista em que vivemos para uma vertente de cuidados humanizados. Desde que nascemos, temos a necessidade de sermos cuidados, de onde surge a necessidade de cuidarmos dos outros. Cada um, cuida de si e dos outros, mas a capacidade de cuidar é condicionada pelo estadio da vida em que nos encontramos, pelas capacidades desenvolvidas e pela forma como fomos cuidados.

Cuidar!… cuidar de mim… do outro… Cuidar?… como se define? Ao longo da história, diferentes perspectivas surgiram sobre o cuidar humano.

Debrucemo-nos sobre a sua filologia. Cuidado deriva do latim cura, que expressa atitude de cuidado, de desvelo, de cautela, de preocupação e de inquietação pelo outro, atendendo à liberdade, aos interesses positivos e às necessidades das pessoas, respeitando assim a sua identidade.

São diversas as conceptualizações acerca do cuidar. Para Mayeroff (1971), cuidar de outra pessoa é ajudá-la a crescer e a actualizar-se, é encorajá-la e ajudá-la a criar e a encontrar os seus próprios recursos para ser capaz de cuidar de si própria. É no cuidar que se experienciam as potencialidades e necessidades de crescimento do outro, de modo que o que cuida seja guiado pela direcção do crescimento do outro e determine respostas relevantes mantendo a independência e respeitando as necessidades. Collière (1999) considera cuidar um acto individual que se presta a si próprio quando se tem autonomia e um acto de reciprocidade que se presta às pessoas que temporária ou definitivamente necessitam de ajuda.

Podem-se identificar dois tipos de cuidados de natureza diferente: os cuidados quotidianos e habituais (care) e os cuidados de reparação (cure). Os primeiros têm por função manter e assegurar a continuidade da vida reabastecendo-a de energia de natureza alimentar, afectiva, psicossocial,… Por outro lado, os cuidados de reparação visam limitar a doença, lutar contra ela e atacar as suas causas através do seu tratamento – o fim último é curar. Estes só fazem sentido se associados aos cuidados correntes com o seu suporte relacional. Diferentes aspectos do cuidar integrado na saúde são apresentados por Hesbeen (2000). Para ele, “cuidar” ou “prestar cuidados” é a atenção especial/ particular/ singular que se resume à escuta indispensável que é dada a uma pessoa que vive uma situação particular, com vista a ajudá-la, a contribuir para o seu bem estar, a promover a sua saúde. É por isto que conceptualiza a prática do cuidar como uma arte e não uma ciência. É arte, na medida em que combina elementos de conhecimento, de destreza, de saber-ser, de intuição, que permitem ajudar alguém, na sua situação singular. Cuidar é também valor, por ser aquilo que se atribui importância, que é acessível a todos, aberto ao conhecimento, que permite melhorar, enriquecer, tornar mais pertinente a ajuda prestada.

Enfermagem… a Ciência do Cuidar Humano!

A orientação para o cuidar, (re) surge, na década de 80, com Madeleine Leininger (1981, 1989) e Jean Watson (1985, 1988). Consideram que os cuidados de enfermagem são, em simultâneo, uma arte e uma ciência humana do cuidar, um ideal moral e um processo transpessoal que visam a promoção da harmonia entre “corpo-alma-espírito” (Lopes, 2000).

Hesbeen (2000) descreve os cuidados de enfermagem como a atenção particular prestada pela enfermeira ou pelo enfermeiro a uma pessoa/ família ou a um grupo de pessoas com vista a ajudá-los na sua situação, utilizando para isso as competências e as qualidades que fazem deles profissionais de enfermagem. De acordo com Watson (1979) citado por Hesbeen (2000) os cuidados de enfermagem são constituídos pelo que compõe a essência – relação interpessoal – e pelo acessório da prática do cuidar – meios (técnicas, protocolos, terminologia, formas de organização, contextos dos cuidados,…).

Cuidar do outro constitui-se numa dimensão extremamente importante – a relacional, através da relação de ajuda. Para Cibanal parafraseado por Martins(1995), relação de ajuda ‘é um intercâmbio humano epessoal entre dois seres humanos. Nesta troca, um dosinterlocutores (o cuidador) captará as necessidades dooutro (a pessoa cuidada), com o fim de ajudá-lo a descobriroutras possibilidades de perceber, aceitar e fazerfrente à sua situação actual’. Lazure (1994, p.9) acrescenta que “essa interacção pressupõe que a enfermeira adopte uma maneira de estar e de comunicar em função do objectivo que se pretende atingir.” Sendo a enfermagemuma profissão de relação, a enfermeira tem como missão desenvolver uma comunicação eficaz, eficiente e positiva, de forma a criar o melhor intercâmbio de informações e ideias possível.

“Comunicar, ou antes, saber comunicar é humanizar” (Soares, 1987). A enfermeira que utiliza a comunicação como instrumento de suporte nas suas intervenções, aproxima-se da Pessoa vulnerável, permitindo-lhe conversar, escutar, tranquilizar, esclarecer dúvidas e criar sentimentos de segurança e esperança.

A compreensão empática é considerada a base de uma boa relação, pois proporciona relações personalizadas e de confiança que aproxima as pessoas. A enfermeira coloca-se no lugar da Pessoa e tenta compreender o que esta está sentindo. Estanqueiro (1993), refere que “uma pessoa compreensiva tenta perceber o universo alheio, como se visse com os olhos dos outros ou como se sentisse com o coração dos outros”.

A escuta implica calma e serenidade. A enfermeira ao manifestar disponibilidade para ouvir permite que o utente se exprima espontaneamente, com a sua linguagem, com os seus silêncios e divagações. Escutar, mais do que falar, é o segredo das boas relações humanas.

A arte de escutar não se resume ao acto extremo de ouvir, implica que quem escuta o faça com todo o seu ser e esteja disponível para a totalidade da comunicação (verbal e não verbal).

O respeito é um valor fundamental do ser humano. Lazure (1994), afirma que respeitar um ser humano “é acreditar profundamente que ele é único, e que devido a essa unicidade só ele possui todo o potencial específico para aprender a viver da forma que lhe é mais satisfatória”.

A congruência consigo própria e com o utente é outra das características essenciais na relação de ajuda. Esta é uma característica fundamental do ser humano, pois possibilita que haja acordo entre o que ele vive interiormente, a consciência que tem sobre o que viveu e a expressão dessa vivência que é traduzida pelo seu comportamento. A congruência tem a sua base na segurança interior e espontaneidade, as quais vão proporcionar o prazer de ser verdadeiramente aquilo que somos.

Neste sentido, o enfermeiro tem de ser congruente pois ao utilizar essa característica cultiva maior segurança e à vontade para lidar com os utentes e ajudá-los a resolverem a sua situação.

A capacidade de clarificar e de ajuda na clarificação é essencial na comunicação enfermeiro-utente pois evita sentimentos negativos de incompreensão e insegurança.

Assim é fundamental a utilização de termos claros, simples, concretos e de fácil compreensão.

Estabelecer laços de confiança com o utente e família necessita de um processo impregnado de todas aquelas “pequenas coisas” que constituem os cuidados de enfermagem (Hesbeen, 2000).

Em suma, as competências profissionais de natureza científica e técnica necessárias ao enfermeiro, insinuam-se por “pequenos gestos” como: sendo um ser caloroso, congruente, preciso e concreto e empático, escutando o utente, mostrando disponibilidade, respeito, amabilidade, simplicidade, humildade, autenticidade, humor, compaixão e afecto por si e pelos outros.

  • Boff, Leonardo – Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 5ª ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. 199 p. ISBN85.326.2162-7.

  • Collière, Marie-Françoise – Promover a vida: da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. s. ed.. Lisboa,1989. 385 p. Tradução de: Maria Leonor Braga Abecasis.ISBN 972-95420-0-7.

  • Estanqueiro, António – Saber lidar com as pessoas. 2ª ed. Lisboa: Presença, 1993. 109 p.

  • Fernandes, Maria Teresa – Será cuidar um caminho ético ou uma obrigação moral?. In “Pensar Enfermagem”. Lisboa. ISSN0873/ 8904. Vol. 2, N.º 2, 2º semestre, 1998.

  • Hesbeen, Walter – Cuidar no hospital: enquadrar os cuidados de enfermagem numa perspectiva de cuidar, s. ed.. Loures: Lusociência,2000. 201 p. Tradução de: Maria Isabel BaptistaFerreira. ISBN: 972-8383-11-8.

  • Lazure, Hélène – Viver a relação de ajuda: abordagem teórica e prática de um critério de competência da enfermeira. s. ed.Lisboa: Lusodidacta, 1994. 214 p. Tradução: MargaridaCunha Rosa. ISBN: 972-95399-5-2.

  • Lopes, Manuel José – Concepções de enfermagem e desenvolvimento sócio-moral: alguns dados e implicações. Lisboa, s. d.. Tesede dissertação de mestrado em ciências de enfermagem.

  • ISBN: 972-98149-0-2. Martins, Maria Clara Sales Fernandes Correia – Do “cuidar” teórico ao “cuidar” vivido: a estrutura essencial da relação de ajuda enfermeira-utente. Lisboa, 1995. 91 p. tese de mestrado.

  • Mayeroff, Milton – On caring. s. ed.. New York: Harper Perennial, 1990. 121 p. ISBN: 0-06-092024-6.

  • Moreira, Marta; e outros – Assistência de enfermagem ao doente crónico. In “Nascer e Crescer”. Porto. ISBN: 0872-0754.Vol. N.º 9, N.º 4, (Outubro/ Novembro/ Dezembro 2000).p. 261-262.

  • Pearson, Alan; Vaughan, Barbara – Modelos para exercício de enfermagem. 1.ª ed.. Londres: Heineman Nursing, 1986. 178p.. ISBN: 0-433-24902-1.

  • Queirós, Ana Maria Correia Albuquerque – Empatia e respeito: dimensões centrais na relação de ajuda. s. ed.. Coimbra:Quarteto Editora, s. data. 156 p. ISBN: 972-8535-03-1.

  • Ribeiro, Lisete Fradique – Cuidar e tratar: formação em enfermagem e desenvolvimento socio-moral. s. ed.. Lisboa: Co-edição Educa e Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, (Maio1995). 109 p.

  • Soares, Sérgio – Humanização dos cuidados de enfermagem no serviço de urgências. In “Enfermagem”. Lisboa. ISN: 0871-0775. N.º 10, (Outubro/Dezembro 1987). p. 33-35.