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Transplante Renal – Condicionalismos e implicações

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Revista Sinais Vitais

O enfermeiro desempenha um papel importante em todo o processo, apesar da sua actuação começar essencialmente no pré-transplante imediato.

Sinais Vitais nº 66

Miguel Fernando Pereira Sousa (Licenciatura em Enfermagem

Serviço de Nefrologia Hospital Geral Snato António e Clínica Hemodiálise do Bonfim)

Este artigo representa essencialmente uma revisão bibliográfica e a experiência de um serviço na área da transplantação renal que data desde 1983, e que ao longo dos anos foi evoluindo no sentido de proporcionar aqueles cujos rins nativos não funcionam, uma esperança e qualidade de vida cada vez maiores. Apesar de ser considerado uma terapêutica de eleição para a insuficiência renal crónica terminal, não está isento de alguns condicionalismos e implicações.

Este trabalho foi apresentado na XV Reunião APEDT ( Associação Portuguesa de Enfermeiros de Diálise e Transplantação ), realizada na Fundação Dr. António Cupertino de Miranda no Porto em Junho de 2001.

PALAVRAS CHAVE: Insuficiência Renal Crónica ;  Transplante Renal ; Qualidade de  Vida ; Imunossupressão; Aspectos Ético Legais ; Complicações.

Qualquer doença crónica tem implicações na vida diária que condicionam a esperança e qualidade de vida. Com a perda da função renal e o recurso indispensável a técnicas dialíticas, a vida individual e colectiva do insuficiente renal crónico ( IRC ), qualquer que seja a sua idade, vulnerabiliza-se, sofre distúrbios e desajustes relativamente a padrões convencionais de vida em sociedade.

A gestão da cronicidade da doença passa acima de tudo por uma nova gestão do quotidiano do doente, exigindo-lhe a reorganização de toda a vida social, familiar, escolar ou laboral ( Fonseca, 1997 ).

Um dos objectivos fundamentais na reabilitação do insuficiente renal crónico, passa pela melhoria da qualidade de vida relacionada com a sua saúde.

Por outro lado assistimos cada vez mais, à avaliação dos resultados de saúde efectuada pelo doente, tanto na forma como afectam a funcionalidade, o desempenho e o bem estar, como na forma em que satisfazem as suas necessidades e expectativas.

Para os IRC as necessidades e expectativas passam por :

  • Estabilização do equilíbrio emocional, procurando restabelecer a auto-imagem e auto-estima;
  • Restabelecimento da autonomia e independência de máquinas, procurando uma maior liberdade de tempo e espaço;
  • Libertação de condicionalismos e restrições impostas pela diálise, como a dieta que terão de respeitar;
  • Resolução de alguns transtornos físicos, que influenciam o estilo de vida, como a uremia, a anemia e a doença ossea;
  • Renovação do papel importante no seio da família e comunidade, procurando restabelecer as relações interpessoais;

O TRANSPLANTE RENAL COMO ALTERNATIVA TERAPÊUTICA

Como nos refere Welch ( 1994 ), qualquer modalidade de tratamento – hemodiálise (HD), diálise peritoneal (DP)ou transplante renal (TR), tem como objectivos, aliviar a sintomatologia clínica, aumentar a expectativa de vida e se possível melhorar a qualidade da mesma, sem que qualquer uma delas seja um tratamento curativo.

Para Bradley ( 1994 ), as investigações a partir dos anos oitenta, procuraram explorar a adaptação dos IRC às diferentes modalidades de tratamento, através de estudos comparativos, que melhor justificassem os objectivos atrás referenciados.

Estudos desenvolvidos por vários autores, referem que os melhores indicadores de qualidade de vida, colocam o transplante renal como terapia de eleição, seguido da hemodiálise domiciliária, depois a diálise peritoneal e finalmente a hemodiálise efectuada no hospital ou clínica privada.

Por outro lado temos vindo a assistir ao longo dos anos a uma frequência cada vez maior nesta prática, com resultados clínicos que demonstram uma melhoria em relação à sobrevivência do doente e enxerto, baixando assim as taxas de mortalidade e morbilidade. Os indices de sobrevida do enxerto e do doente no primeiro ano são superiores a 85 % e 90 % respectivamente.

Para toda esta evolução houve uma contribuição de vários factores:

  • novas técnicas com aperfeiçoamento cirúrgico ;
  • a melhoria da conservação e extracção de orgãos ;
  • o desenvolvimento da imunologia clínica com o aparecimento de novos programas de imunossupressão com menor risco e maior eficácia ;
  • progressos contínuos no conhecimento, prevenção e tratamento de complicações como a rejeição e infecção.

De realçar ainda, e segundo Dutton ( 1988 ), a longo prazo a transplantação é a forma de tratamento da IRC terminal que permite a melhor relação custo benefício.

O TR com êxito, torna-se assim a alternativa mais fisiológica de tratamento, permitindo a reposição integral das funções renais e uma melhor reabilitação.

Contudo, muitas pessoas que se sujeitam ao TR, trocam um programa de diálise crónica com as suas limitações e exigências, por um novo programa terapêutico com novos condicionalismos e implicações.

ASPECTOS ÉTICO – LEGAIS NO TRANSPLANTE

Nesta área é necessário uma abordagem multidisciplinar, capaz de evitar situações de conflito, devendo existir um consenso generalizado. Existem aspectos relacionados com o dador vivo ( éticos, morais e religiosos ), sendo necessário um consentimento livre, informado e esclarecido. Além disso existem algumas contraindicações clínicas que impedem o TR de dador vivo, como:

  • proteinúria e/ou hematúria
  • função renal alterada
  • infecção activa
  • doença maligna ou coronária
  • psicose e uso de drogas
  • gravidez

Os aspectos relacionados com o dador cadáver, devem levar em linha de conta os princípios éticos da autonomia, da beneficiencia e da veracidade, sem esquecer algumas contraindicações clínicas.

Em relação ao receptor é indispensável que existam condições clínicas para se efectuar o TR, além disso serão importantes :

    • a probabilidade e duração do benefício para o doente
    • o impacto do tratamento na qualidade de vida
    • a condição de urgência e a quantidade de recursos requeridos para se efectuar um tratamento com êxito

Todos estes aspectos assim como os princípios subjacentes à distribuição dos orgãos (equidade e justiça), deverão funcionar como critérios públicos e susceptíveis de serem verificados.

Apesar de toda uma evolução favorável o TR encontra- se potencialmente associado a algumas complicações, podendo ser clínicas ou cirúrgicas, e que poderão condicionar de certa forma a recuperação ou mesmo a viabilidade do enxerto.

Vou apenas referenciar algumas delas que pela sua frequência ou importância clínica  merecem bastante atenção.

COMPLICAÇÕES DO TRANSPLANTE

A rejeição do enxerto apresenta-se mais frequente nos primeiros três meses, sob a forma de rejeição aguda. A disparidade antigénica dador / receptor funciona como uma barreira biológica e como obstáculo clínico, não permitindo por vezes, que o organismo aceite o enxerto. A sua frequência e tempo de ocorrência estão relacionadas com a compatibilidade do sistema antigénio leucocitário humano ( HLA ), e com os esquemas de imunossupressão usados. A origem do enxerto tambem influência a sobrevida do TR, consoante seja um dador cadáver ou dador vivo. Estudos realizados referem que um TR de cadáver sem incompatibilidades, tem uma sobrevida do enxerto no primeiro ano superior a 88 % e uma vida média de 15 anos.

Na rejeição crónica existe uma deterioração lenta e progressiva da função renal, sem resposta ao tratamento imunossupressor, levando à IRC terminal.

A infecção apresenta-se como a causa mais frequente de morbilidade e mortalidade (70% a 80% dos receptores), podendo ser vírica (50%), bacteriana (30%), fúngica (5%) ou mesmo ter vários agentes implicados (15%). A etiologia é variada sendo muito importantes o diagnóstico e tratamento precoces. Poderá ser necessário considerar a diminuição da imunossupressão. O periodo de ocorrência revela-se importante para se saber o tipo de infecção em causa. No primeiro mês aparecem mais frequentemente as complicações cirúrgicas e as infecções nosocomiais, do segundo ao sexto mês é o periodo de máxima imunossupressão, logo aparecem com mais frequência os germens oportunistas. Após o sexto mês o que geralmente aparece são as infecções comuns e/ou relacionadas com a própria imunossupressão. Por tudo isto é importante que os profissionais de saúde tenham sempre presente que estão a tratar de doentes com a sua imunidade comprometida, logo todo o cuidado é pouco!

IMPORTÂNCIA DA IMUNOSSUPRESSÃO

A imunossupressão desempenha aqui um papel importante uma vez que por um lado visa prevenir a rejeição aguda e crónica, mas deve levar-se em linha de conta a possibilidade da morbilidade infecciosa e/ou neoplásica. É indispensável evitar-se a sobreimunossupressão e procurar-se a especificidade, dado que poderão ter efeitos adversos sobre vários orgãos e sistemas. A imunossupressão ideal terá como objectivos:

  • prevenir ou minimizar a reacção aos antigénios transplantados
  • respeitar a restante resposta imunológica
  • proporcionar melhor função e maior duração do enxerto
  • ser bem tolerada pelo doente e sem efeitos secundários
  • ser de fácil administração

Tem existido uma inovação progressiva nesta terapêutica, com uma evolução cronológica da utilização dos medicamentos que melhor garantam aqueles objectivos.

ENSINO E ORIENTAÇÃO AO TRANSPLANTADO

O estabelecimento de um programa de ensino e orientação deve começar logo no pré-transplante. É indispensável que os doentes sejam bem informados e que a sua decisão seja isenta de dúvidas ou incertezas, mantendo sempre presentes os riscos e complicações que eventualmente possam surgir (consentimento livre e informado).

O enfermeiro desempenha um papel importante em todo o processo, apesar da sua actuação começar essencialmente no pré-transplante imediato.

Assim é necessário que o doente e família compreendam os resultados previstos e os cuidados de acompanhamento necessários. Deverá ser explicada a natureza cirúrgica e o local de implantação do enxerto.Os doentes devem estar preparados para a hipótese de o rim não funcionar de imediato e para a necessidade de efectuarem algumas sessões de diálise. A rejeição aguda é sempre um aspecto que terão de levar em linha de conta, principalmente nos primeiros meses.

Neste periodo importa identificar todas as preocupações e ansiedade do doente e família, procurando efectuar apoio psicológico a ambos.

O plano de ensino e orientação deve continuar no pós-transplante, focando essencialmente os seguintes aspectos:

  • Hábitos saudáveis de vida

A dieta alimentar tem a sua importancia na medida em que após o TR verifica-se um aumento de apetite devido à medicação imunossupressora e devido à sensação de liberdade e bem estar. Este aumento de apetite deve ser controlado para evitar  aumentos de peso excessivo com consequente obesidade, hipertensão etc…

A prática de exercício físico deve ser incentivada e deve haver um reforço de medidas de higiene para que se evitem as infecções devido à imunossupressão nestes doentes.

  • Planeamento de terapêutica e consultas

Importa que os doentes conheçam o nome, as dosagens, a frequência e efeitos secundários da medicação. É dado relevo à imunossupressão e estes doentes fazem-se acompanhar de um cartão da medicação imunossupressora que tomam quando recorrem à urgência ou às consultas. As consultas são planeadas com intervalos mais curtos no inicio para maior vigilância e posteriormente são marcadas com intervalos maiores.

  • Programa de vigilância contínua

Este programa deve ser incutido ao doente, fornecendo alguns sinais de alerta que requerem atenção imediata. Importa explicar a necessidade de leitura e registo diário da temperatura, peso e débito urinário. Os sinais ou sintomas que o transplantado terá de estar atento tem a ver com a diminuição do débito urinário, a febre, o aumento súbito de peso, a hipertensão, o edema, a dor ou sensibilidade sobre o enxerto. Estes factores tem de ser levados em consideração, pois poderão traduzir uma infecção ou rejeição.

  • Recursos disponíveis de assistência

Estes doentes assim que tem alta ficam com os contactos do serviço para qualquer esclarecimento imediato. São referenciadas as associações de apoio na reabilitação da doença e reintegração.

EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO DE NEFROLOGIA

No serviço de Nefrologia – Unidade de Transplantação Renal – do Hospital Geral de Santo António no Porto, foram transplantados até ao final do ano 2000, um total de 1038 doentes, dos quais 941 ainda se encontram vivos e 742 mantém o rim funcionante. O transplante renal nesta unidade iniciou-se em 1983, com 7 doentes e desde essa altura não tem parado de crescer.

No ano 2000 efectuaram-se 82 transplantes em que 73 constituíram o primeiro transplante e 9 representam o segundo transplante. Do total transplantado 80 foram realizados com rim de cadáver e 2 com rim de dador vivo ( figura 1 ).

Figura 1

Nesse ano, a faixa etária com maior numero de transplantes situa-se dos 30 aos 45 anos, com 35 transplantes, sendo a média de idade de 39,97 anos e aquela onde ocorreu menor numero foi até aos 15 anos com 4 transplantes.

A incidência de rejeição aguda no último triénio, oscilou entre valores de19,4 % no ano 1998, subindo para 23 % no ano de 1999, e em 2000, tiveram pelo menos um episódio de rejeição aguda apenas 17,5 % dos doentes.( figura 2 )

Figura 2

Os resultados globais em termos de sobrevida do doente e enxerto, são sobreponíveis aos valores de outros países, verificando-se valores aproximados de 90% e superiores a 95% para as taxas de sobrevida do doente e enxerto respectivamente no primeiro ano.

( figura 3 )

Figura 3

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O TR continua a ser o tratamento de eleição, para aqueles cuja alternativa para a insuficiência renal, passa basicamente por três tipos de soluções. No entanto e apesar de uma grande evolução nesta área, este programa terapêutico apresenta-se com limitações e exigências. É importante que o doente que se submeta a TR esteja consciente dos riscos e complicações que poderão advir, sem esquecer que o transplante poderá falhar, obrigando a optar por outras alternativas.Doar e receber um orgão deverão ser actos conscientes e voluntários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRADLEY, C.; McGee, H. – Quality of Life Following Renal Failure – Psychosocial Challenges Accompanying High Technology Medicine – Harwood Academic Publishers London ; 1994.

  • DAUGIRDAS, J.; ING, T. – Handbook of Dialysis – 2ª edition ; London ; Little Brow ; 1994.

  • DUTTON, Mary – Transplantação – Nursing ; Lisboa ; Ferreira & Bento ; Ano 1 ; nº 3 ; 1988 ; p. 28 – 32.

  • LLACH, F.; VALDERRÁBANO, F. – Insuficiência Renal Crónica – Diálisis y Trasplante Renal – 2ª edición ; Ediciones Norma ; Madrid ; 1997 ; pag.1397 – 1873.

  • MOLZAHN, A. E. – Quality of Life after Organ Transplantation – Journal of Advanced Nursing ; nº 16 ; 1991 ; p. 1042 – 1047.

  • MOTA, P. G. M.; et al. – Calidad de Vida Relacionada con la Salud en Pacientes con Trasplante Renal y Hemodiálisis – Enfermeria Clínica ; Madrid ; vol. 6 ; nº 4 ; 1993.

  • RIBEIRO, F. ; et al. – Manual de Hemodiálise – Edição Clínica Doenças Renais ; Lisboa ; 1997 ; p.37 – 42 e p.251 – 266.