Início Artigos de Autor Reflectindo sobre a Enfermagem

Reflectindo sobre a Enfermagem

119
0
Artigos de Autor

O importante da educação não é apenas formar um mercado de trabalho, mas formar uma nação, com gente capaz de pensar

Reflectindo sobre a Enfermagem: – Que práticas, que desenvolvimento, que futuro?

INSTITUTO POLITÉCNICO DE BEJA
ESCOLA SUPERIOR DE SAÚDE DE BEJA
XIV CURSO DE LICENCIATURA EM ENFERMAGEM
4º Ano / 2º Semestre
Unidade Curricular: Estágio
Programa de Mobilidade Internacional Sócrates Erasmus

Växjö, Suécia

«O importante da educação não é apenas formar um mercado de trabalho, mas formar uma nação, com gente capaz de pensar»

José Arthur Giannotti (s.d.)

Nesta fase final do nosso percurso académico enquanto estudantes de Enfermagem, realizar uma reflexão crítica acerca das várias etapas de formação pelas quais vamos passando e nas quais nos vamos entregando vivamente, não é algo que nos cause estranheza. Aliás, este foi muitas vezes o método utilizado preferencialmente por nós estudantes, mas também pelos professores, para assegurar que as experiências, os conhecimentos e as competências adquiridas durante o dia-a-dia de contacto directo com os utentes na prestação de cuidados de enfermagem, ficariam sedimentados “em solo firme” e prontos a alicerçar um desenvolvimento futuro.

Pelo facto de actualmente estarmos a viver uma das mais ricas experiências de formação, proporcionada pelo Programa de Mobilidade Internacional Sócrates Erasmus, consideramos que também neste momento se afigura de extrema importância a realização deste exercício. Estamos convencidos que apenas deste modo será possível encontrarmos alguma “acalmia intelectual”, que nos permita retirar conclusões e aprendizagens lúcidas dentre o imenso turbilhão de vivências que temos tido oportunidade de experienciar. As grandes diferenças culturais, geográficas, económicas, organizacionais e formativas existentes entre Portugal e a Suécia, levaram-nos a tomar contacto com realidades muito díspares daquelas com as quais estamos habituados a lidar no nosso país, naquilo que diz respeito aos recursos, à organização e ao funcionamento dos serviços de saúde e particularmente aos cuidados de enfermagem.

Com a gradual evolução dos tempos e o surgimento de novas profissões e especializações, os trabalhadores foram-se unindo em torno das mesmas e criando mecanismos legais que permitem proteger a autonomia das actividades que desempenham, para que só as pessoas devidamente creditadas as possam realizar. Tal como em muitas outras profissões, também a enfermagem viu nascer em Portugal a Ordem dos Enfermeiros, que desde 1998 regulamenta e fiscaliza o exercício desta profissão. (Ordem dos Enfermeiros, 2010) No nosso entender, o propósito desta associação assume actualmente ainda maior relevância, numa altura em que os recursos económicos são escassos e a saúde é tendencialmente gerida por gestores, sendo por isso necessário garantir que existem mecanismos reguladores que não permitem que outras classes profissionais tentem gradualmente substituir os enfermeiros na prestação de cuidados de enfermagem, mesmo sem terem a formação e as competências exigidas a estes profissionais.

No entanto, para além desta componente mais jurídica que representa e defende a profissão, em Portugal é possível perceber que também os próprios enfermeiros manifestam no seu dia-a-dia de relacionamento interdisciplinar, a preocupação e o interesse em preservar e salientar os limites das intervenções de outras classes profissionais, em relação aos seus, de forma a não colidirem nem transporem a fronteira para aquilo que são as intervenções de enfermagem.

Se esta descrição assenta perfeitamente no paradigma actual do nosso país, o mesmo não se pode dizer da prática de enfermagem na Suécia. Apesar de não entendermos o sueco e com isso podermos não compreender tão facilmente “nas entrelinhas”, o que é certo é que em nenhum momento foi possível observar preocupação por parte dos enfermeiros, face à necessidade de preservar a sua autonomia e protagonismo na prestação de cuidados de enfermagem aos utentes. Esta realidade não nos causaria qualquer preocupação ou estranheza, caso os enfermeiros fossem os únicos profissionais a prestar cuidados aos utentes. No entanto, não é isso que acontece, verificando-se pelo contrário uma grande intervenção dos assistentes operacionais (auxiliares de acção médica), sendo estes os principais prestadores de cuidados aos utentes ao longo do turno. Estamos por isso convencidos que a profissão de enfermagem e aquilo que mais a caracteriza, estão aqui sob maior risco de “desapropriação” do que no nosso país.

Se como referimos anteriormente, em Portugal poderão ser as questões económicas as principais responsáveis por eventuais tentativas futuras de alterar a realidade da prestação de cuidados de enfermagem aos utentes, na Suécia o factor económico não é certamente o responsável por essas mudanças. Temos sim em crer que a existência e a rápida expansão de uma classe numerosa de profissionais designados de undernurses1, os quais ocupam um lugar de destaque na proximidade, disponibilidade e assistência aos utentes, na esmagadora maioria dos serviços nos quais tivemos oportunidade de prestar cuidados, será o principal factor de risco a ter em conta.

Palavra inglesa que neste documento é empregue como sinónimo de assistentes operacionais.

No sentido de caracterizar sucintamente esta classe, podemos dizer que a mesma é composta por pessoas que realizaram um percurso formativo de cerca de dois anos numa escola profissional, ficando assim legalmente possibilitadas de, no exercício das suas funções, ter:

 acesso a todos os dados do utente, estando aliás presentes na passagem de turno;

 autonomia para escrever no processo electrónico do utente;

 autonomia para requisitar o tipo de alimentação para os utentes;

 autonomia para avaliar os sinais vitais;

 autonomia para realizar colheitas de sangue e de urina, sob prescrição médica;

 autonomia para realizar aspiração de secreções das vias aéreas;

 autonomia para avaliar e “tratar” úlceras/ feridas;

 autonomia para realizar electrocardiogramas, sob prescrição médica;

 autonomia para realizar algaliações, sob prescrição médica.

Apesar de não termos conseguido apurar se neste país, tal como acontece em Portugal, existe um órgão regulador da prática de enfermagem que se preocupe com este tipo de questões, consideramos que alguma da culpa destas mudanças deve ser imputada aos enfermeiros. Dizemo-lo porque apesar de continuarem a ser os responsáveis pelos cuidados prestados aos utentes, não vêem qualquer preocupação que a ténue barreira que separa a sua actuação diária da actuação dos undernurses, seja o facto de poderem colocar cateteres venosos periféricos, preparar e administrar a medicação e realizar registos de enfermagem informatizados. É isto que acontece na grande maioria dos serviços que tivemos oportunidade de conhecer. 5

É claro que nós enquanto portugueses e defensores do paradigma actual da prestação de cuidados de enfermagem no nosso país (no que diz respeito à questão abordada) olhamos este ponto com preocupação. Esta não é definitivamente a enfermagem com a qual nos identificamos, nem aquela na qual nos vemos a trabalhar de forma conivente. Ao tomarmos contacto com esta realidade que para nós era desconhecida e ao reflectirmos sobre ela, questionamo-nos se as disparidades verificadas entre os dois países terá um fundamento meramente cultural ou se o que se vive actualmente na Suécia, representa de algum modo o futuro próximo da enfermagem no nosso país, visto o primeiro ser considerado mais desenvolvido na área da saúde.

No sentido de procurar respostas para esta nossa inquietação e podermos assim chegar a conclusões devidamente fundamentadas que nos façam crescer “em solo firme”, decidimos perceber o que pensa um dos mais conceituados teóricos de enfermagem da actualidade, Walter Hesbeen. Constatámos assim que também este autor partilha da nossa preocupação no que diz respeito ao crescente envolvimento dos undernurses na prestação de cuidados aos utentes, nomeadamente no que diz respeito às intervenções que lhes são delegadas e que são do domínio da enfermagem. Hesbeen (2000) afirma mesmo que “Chegamos assim à noção de «redundância funcional», uma vez que os actos prescritos poderiam ser efectuados pelos prescritores enquanto os outros, pouco técnicos, poderiam ser efectuados por pessoal auxiliar” (p. 60). O autor vai mesmo mais longe, ao dizer que conheceu “(… inúmeros gestores que não viam por que haveriam de recrutar pessoal de enfermagem quando, em certos sectores, não havia senão actos de «nursing»”. (p. 61)

Perante tais esclarecimentos, podemos então concluir que esta diferença encontrada entre os dois países em análise não se prende com factores culturais, uma vez que Hesbeen é um autor internacional e manifesta a mesma preocupação que nós. Por outro lado, foi também possível concluir que a realidade que está a ser vivida presentemente na Suécia, não deverá representar de modo algum uma antevisão daquilo que se espera que seja o futuro da enfermagem em Portugal, nem em nenhuma parte do mundo.

Para além destas preocupações de carácter mais socioprofissional e legal, não podemos ficar alheios a outras preocupações que se prendem com as repercussões práticas deste modelo organizacional e funcional para os próprios utentes. Apesar de não dispormos de resultados mensuráveis de um ponto de vista de ganhos em saúde, acreditamos que com a delegação de intervenções de enfermagem nos undernurses, os ganhos em saúde serão menores que aqueles que se poderiam alcançar com a uma intervenção integral dos enfermeiros neste campo. Dizemo-lo com alguma tranquilidade, porque não raras vezes presenciámos que enquanto o enfermeiro permanecia no computador logo após a passagem de turno, a ler informações sobre os utentes e a preparar a medicação, eram os undernurses que se encarregavam de prestar os cuidados de higiene aos utentes, de ajudá-los a vestir-se, a alimentar-se, etc, o que dia após dia acaba por levar a um afastamento físico gradual entre o enfermeiro e o utente. Em nossa opinião, este modelo de prestação de cuidados acaba por trazer consigo potenciais consequências negativas para os utentes, como é o simples exemplo da impossibilidade do enfermeiro despistar alterações cutâneas durante a higiene do utente, alterações essas que por ventura poderão não ser compreendidas e valorizadas pelos assistentes operacionais. Relacionado com este ponto, outra das consequências é o facto de serem apenas estes a avaliar e a tratar as feridas/ úlceras dos utentes, ficando assim os enfermeiros completamente à margem deste cuidado, apesar de legalmente continuarem a ser os responsáveis pelos cuidados prestados aos utentes.

Contudo, não só nos serviços de internamento estas situações de delegação “descuidada”se verificam. Também no Serviço de Urgência, nomeadamente na sala de emergência (que deveria contar com os profissionais mais qualificados e diferenciados para avaliar e cuidar dos utentes emergentes) os undernurses realizam grande parte das intervenções de enfermagem, enquanto o enfermeiro fica atrás do computador a inserir dados no processo do utente. Cabe então aos assistentes operacionais realizarem a monitorização dos utentes, a avaliação dos sinais vitais, a colheita de sangue para análises e ainda a execução de electrocardiogramas ou de algaliações quando prescritos.

Tal como referimos acima, consideramos que esta delegação de intervenções acaba por ser “descuidada” e mais uma vez potencialmente prejudicial para o utente, dado que o enfermeiro é um profissional bem mais diferenciado que um assistente operacional, sendo por exemplo certamente capaz de relacionar irregularidades na frequência e ritmo cardíaco, com um pulso filiforme e com uma respiração superficial, aquando da avaliação dos sinais vitais, o que irá orientar as principais intervenções a realizar. Este exemplo demonstra que se o enfermeiro apenas tiver em conta os valores dos sinais vitais fornecidos pelo assistente operacional (que eventualmente até poderão estar dentro dos parâmetros normais no que diz respeito ao valor numérico que caracteriza cada um deles), acaba por não basear a análise da condição de saúde do utente na plenitude dos dados em que se deveria basear, caso fosse ele próprio a avaliá-los. Desta feita pode daí surgir um juízo incorrecto que influencie a orientação das intervenções de enfermagem que decida realizar.

Por tudo aquilo que foi descrito, analisado e discutido até aqui, consideramos que é possível concluir que na Suécia, nomeadamente nos serviços onde prestámos cuidados, os utentes acabam por estar sujeitos a uma estrutura organizacional e funcional que não potencia a aquisição dos ganhos em saúde esperados, caso os cuidados fossem prestados predominantemente por enfermeiros.

Finalizado este primeiro ponto de reflexão tão importante para nós enquanto futuros profissionais numa comunidade cada vez mais global, queremos focar agora a nossa atenção nos registos de enfermagem informatizados, bem no software utilizado para o efeito. Com a evolução da tecnologia e especialmente num país desenvolvido como a Suécia, os recursos tecnológicos e informáticos não são um problema, pelo que os enfermeiros dispõem de computadores e de softwares que lhes permitem registar os dados recolhidos dos utentes, bem como os cuidados de enfermagem prestados aos mesmos. Tal como acontece no nosso país, também os enfermeiros suecos dão grande importância ao registo das suas intervenções, como forma de salvaguardar os cuidados prestados ao longo do turno.

No entanto, a interacção que o enfermeiro estabelece com o computador não é vista por nós de uma forma pacífica, apontando-lhe como crítica o grande volume de tempo que os enfermeiros despendem na utilização do mesmo, ao invés de se encontrarem em prestação efectiva de cuidados ao utente, o principal alvo das suas intervenções. Não é exagero se dissermos que em qualquer dos serviços onde tenhamos prestado cuidados, os enfermeiros passam mais de 50% do turno em contacto com o software informático. Esta é para nós uma realidade preocupante, dado que na Suécia o enfermeiro está a transformar-se cada vez mais num administrativo que dedica grande parte do seu tempo a escrever e a ler informações sobre os seus utentes.

Pelo facto desta ser mais uma das questões que nos preocupam, decidimos confrontar os enfermeiros com esta realidade e percebemos que os mesmos manifestam alguma preocupação e vontade de poder ter mais tempo disponível para prestar cuidados aos utentes. Contudo, os mesmos referiram que é também muito importante obter o máximo de informações sobre os utentes, uma vez que na passagem de turno uma parte dessa informação acaba por não ser mencionada.

Ao procurar fazer uma comparação com as práticas realizadas em Portugal, consideramos que os enfermeiros do nosso país não sentirão esta necessidade com tanta premência, uma vez que nas passagens de turno é fornecida informação bastante completa, que permite aos colegas darem continuidade à prestação de cuidados.

No que diz respeito ao funcionamento do próprio software, conseguimos perceber que este é bastante mais complexo que aquele que é utilizado por nós em Portugal, permitindo a conexão entre todos os profissionais de saúde da região (até de clínicas privadas) e ainda requisitar e ter acesso aos resultados dos exames complementares de diagnóstico, bem como à medicação prescrita, entre outros, factor que poderá ser também justificativo de parte do tempo que despendem na sua utilização.

Em relação a este ponto e à semelhança do que fizemos anteriormente, questionámo-nos se existirão realmente mais ganhos em saúde com todo este investimento de tempo e de atenção em torno do computador. Mais uma vez não possuímos dados objectivos que nos permitam fundamentar a nossa preocupação para com a qualidade dos cuidados prestados aos utentes e respectivos resultados, mas pelas diversas situações que fomos observando ao longo dos turnos, conseguimos defender a nossa convicção. É disso exemplo o facto dos utentes continuarem a precisar diariamente que lhes sejam prestados os cuidados essenciais à satisfação das suas necessidades básicas de vida e, os enfermeiros, estando ocupados com o computador, acabam por delegar esses cuidados, que deveriam ser de enfermagem, nos assistentes operacionais. Ora aqui mais uma vez se assiste àquilo que já referimos acima, que é um afastamento progressivo do enfermeiro em relação ao utente e consequentemente uma diminuição da qualidade dos cuidados prestados, tendo como certeza que o enfermeiro é o único profissional habilitado para prestar cuidados de enfermagem.

Outro dos exemplos é uma situação que retrata o quão frágil e talvez mal direccionada é por vezes esta busca de informações acerca dos utentes, uma vez que ao questionar uma enfermeira sobre qual a data da última dejecção de uma utente, esta respondeu não ter conhecimento, tendo de voltar ao computador para consultar. Deste modo pudemos mais uma vez comprovar que as leituras que realizam acerca dos utentes, poderão não conduzir aos ganhos em saúde que os mesmos esperavam, demonstrando esta situação que por vezes as informações mais simples, mas que ao mesmo tempo são também aquelas que suportam a base dos cuidados de enfermagem, não são tidas em conta, influenciando com certeza as intervenções do enfermeiro face às diversas actividades de vida.

Para além destas questões de carácter mais prático relacionadas com a prestação de cuidados, é-nos ainda difícil compreender outros aspectos de carácter mais legal, que se prendem nomeadamente com o facto do enfermeiro ser o responsável dos cuidados de enfermagem prestados ao utente ao longo do turno e, ao mesmo tempo, ser também um dos profissionais que mais distante está deste (à excepção do médico), delegando grande parte dos cuidados nos assistentes operacionais. Estamos certos que em Portugal os enfermeiros nunca iriam aceitar tais condições, sabendo que a maioria dos cuidados seriam prestados por estes profissionais, devido à sua pouca disponibilidade para os utentes.

No sentido de dar por concluído este ponto, não queríamos deixar de reflectir sobre aquele que é para nós o maior handicap do software informático utilizado pelos enfermeiros na Suécia, que se prende com a não incorporação da Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE). Como sabemos, esta classificação é vista em Portugal e em muitos outros países como uma ferramenta essencial para o presente e para o futuro da profissão, pois:

 “Establishes an international standard to facilitate description and comparison of nursing practice”;

 “Serves as a unifying nursing language system for international nursing based on state-of-the-art terminology standards”;

 “Represents nursing concepts used in local, regional, national and international practice, across specialties, languages and cultures”;

 “Generates information about nursing practice that will influence decision-making, education and policy in the areas of patient needs, nursing interventions, health outcomes, and resource utilization”;

 “Facilitates the development of nursing data sets used in research to direct policy by describing and comparing nursing care of individuals, families and communities world wide”;

 “Improves communication within the discipline of nursing and across other disciplines”;

 “Encourages nurses to reflect on their own practice and influence improvements in quality of care”.

(ICN, 2010, p.1)

Tendo apenas em linha de conta os registos informáticos, podemos então concluir que a enfermagem na Suécia não é uma enfermagem virada para as exigências do futuro, naquilo que diz respeito à necessidade de comprovar objectivamente os ganhos em saúde decorrentes das intervenções de enfermagem, nem eventualmente naquilo que se prende com a importância de realizar e promover a investigação, que certamente seria facilitada pela utilização desta classificação. Cremos portanto que este país, naquilo que diz respeito à enfermagem, poderá estar a caminhar para uma posição de isolamento em relação aos restantes países que já adoptaram esta classificação, ignorando assim os benefícios que um desenvolvimento conjunto, partilhado e sustentado poderá trazer.

Contudo, no seio de tantas “imperfeições” apontadas por nós a esta enfermagem que encontrámos na Suécia, é também importante sermos imparciais e saber reconhecer as suas virtudes, na medida em que esta classe profissional se tem sabido adaptar às necessidades dos novos tempos, criando um grande número de especialidades de enfermagem pelas quais os enfermeiros podem enveredar. Quanto a nós, este é um dos aspectos em que a enfermagem em Portugal está a um nível inferior ao da Suécia. Não daríamos tanta relevância a esta questão, se soubéssemos que o futuro da enfermagem no nosso país, tal como a conhecemos, não está em risco. Queremos com isto dizer que acreditamos que se nos continuarmos a cingir às especialidades que existem em Portugal, poderemos correr o risco de aos poucos começarmos a perder campos de acção enquanto enfermeiros. Exemplo disso é o que já está a acontecer com a proposta e discussão do Plano Estratégico dos Recursos Humanos da Emergência Pré-Hospital, que discretamente está a preparar este campo de intervenção para uma diminuição gradual do número de enfermeiros envolvidos na emergência pré-hospitalar, sendo estes “substituídos” por Técnicos de Ambulância de Emergência, formados unicamente para realizar técnicas de “nursing”. (INEM, 2010) O próprio sindicato desta classe profissional já veio a público afirmar que:

“(… estes técnicos são os únicos que têm competências pré-hospitalares e o INEM é o único que detém ambulâncias profissionais com equipas compostas por estes técnicos. O facto de a carreira não existir origina carência de técnicos devidamente habilitados, pelo que o INEM recorreu à requisição de enfermeiros para suprir as necessidades, sendo que estes não têm as competências nem as habilitações necessárias para fazer parte de uma equipa de ambulância.”

(Gamboa, 2008:1)

No sentido de reforçar a importância e a contemporaneidade desta nossa preocupação, voltamos a consultar Hesbeen (2000), que sobre este assunto afirma que:

“(… não se pode perder de vista que as próprias técnicas médicas evoluem. Tornam-se assim cada vez menos invasivas. Por isso, são menos traumatizantes e precisam de uma vigilância pós-operatória ou pós-intervenção diferente e sobretudo de um período de internamento menor. (… As técnicas médicas vão assim alterar profundamente o panorama hospitalar no qual, a longo prazo, o internamento terá quase desaparecido. Mesmo com esta evolução, defendemos que o hospital terá sempre necessidade de pessoal de enfermagem, mas o seu número e as suas funções serão alterados. (… Por conseguinte, convém iniciar sem demora uma viragem que permita mostrar o interesse real da presença de enfermeiros em outras estruturas que não sejam o hospital.” (pp. 61-62)

Dito isto, julgamos que ficou demonstrado que não só de “imperfeições” se reveste a enfermagem na Suécia, sendo por isso também possível e desejável que aprendamos com estas novas apostas de sucesso.

Aproximando-nos de um dos últimos pontos de reflexão contidos neste documento, debruçamo-nos agora sobre a autonomia da enfermagem enquanto profissão com um corpo de saberes científicos próprio. Em relação a este assunto, podemos afirmar que no nosso país é possível perceber uma preocupação generalizada por parte da classe dos enfermeiros, em manter e procurar aumentar ainda mais essa autonomia, tendo por base a descoberta e fundamentação de novos conhecimentos baseados em evidências científicas. Ao contrário desta corrente ambiciosa e progressista vivida em Portugal, na região da Suécia que tivemos oportunidade de conhecer, ficámos com a nítida sensação que esta não é uma preocupação que atinge os enfermeiros no seu dia-a-dia. Por um lado, como já referimos, o desinteresse pela CIPE evidencia a priori alguma despreocupação com este tipo de questões e, por outro, mesmo durante a prestação de cuidados aos utentes, esta classe profissional demonstra grande subserviência à classe médica, num acto de completa desvalorização da sua autonomia.

Tendo em conta todos os exemplos que temos vindo a descrever e a analisar até aqui, facilmente se percebe que a enfermagem neste país vê as suas intervenções predominantemente reduzidas a algumas actividades interdependentes, uma vez que aquelas que deveriam ser as suas intervenções autónomas de enfermagem são delegadas noutros. Este modelo funcional que afasta o enfermeiro do utente, acaba por se constituir como uma barreira que dificulta a identificação de problemas reais ou potenciais e a consequente elaboração de diagnósticos de enfermagem, limitando ainda mais a realização de intervenções autónomas por parte do enfermeiro.

Dos inúmeros serviços que tivemos oportunidade de conhecer, consideramos que aquele em que a subserviência atinge o seu expoente máximo é o Centro de Saúde, no qual grande parte dos enfermeiros assume sorridentemente a função de assistente dos médicos nas suas consultas. Limitam-se na grande maioria das vezes a executar as prescrições médicas, a tratar de parte das questões administrativas referentes aos utentes e, por vezes, até a receber o pagamento das consultas. Esta realidade é um completo desvio daquilo que é a mais pura essência da enfermagem, uma vez que “O ser humano esteve desde sempre no centro da atenção dos enfermeiros.” (Vieira, 2008:80) Ao invés disso, estes enfermeiros estão apenas focados nos actos técnicos, não fazendo uso da globalidade dos conhecimentos adquiridos ao longo do seu percurso de formação, em prol da saúde dos utentes.

O presente modelo organizacional e funcional destes Centros de Saúde não permite a todos os enfermeiros terem os seus próprios utentes na comunidade, nem mesmo realizar planeamento em saúde com vista a promover a saúde e prevenir determinadas doenças. Assiste-se deste modo a uma enfermagem pouco ou nada criativa/ autónoma, que intervém de forma meramente reactiva aos estímulos externos que lhe são fornecidos pelos médicos e pelos utentes, uma vez que a comparência destes últimos nos Centros de Saúde, se deve, na maioria das vezes, a motivos de doença ou a obrigações legais para com os agentes empregadores (consultas de rotina) e não a acções de promoção da saúde e de prevenção de doenças realizadas pelos enfermeiros.

Deste modo, e sabendo que pelo conceito de Cuidados de Saúde Primário se entendem todos os cuidados dirigidos a uma população, indivíduo e/ ou família, com o intuito de promover a sua saúde e prevenir o surgimento de doenças, podemos concluir facilmente que os Centros de Saúde onde prestámos cuidados, apresentam uma componente quase nula no que respeita a este nível de intervenção, contrariando aquilo que deveria ser o seu principal foco de intervenção.

Por este motivo, mas também por tudo aquilo que foi discutido ao longo da reflexão e pelas conclusões a que fomos chegando de uma forma sustentada, consideramos que se não fosse a grande variedade de especialidades que permitem aos enfermeiros da Suécia explorar novos campos de acção (ainda que por vezes desviando-se um pouco daquilo que é a essência dos cuidados), a enfermagem neste país encontrar-se-ia completamente “à deriva”.

Enquanto elaborámos esta frase, questionámo-nos vezes sem conta sobre o porquê de nós, enquanto estudantes portugueses, apontarmos todas estas críticas à enfermagem, ao passo que nenhum de entre as dezenas de enfermeiros suecos que conhecemos, ter manifestado qualquer preocupação face à realidade do seu dia-a-dia na prestação de cuidados de enfermagem (à excepção do tempo despendido com os registos informáticos de enfermagem). Após reflectirmos um pouco em torno desta questão e de termos contactado também com alguns estudantes de enfermagem suecos, pudemos por fim perceber que as grandes diferenças existentes entre os nossos pontos de vista e a nossa capacidade crítica, tem como origem as próprias diferenças verificadas entre os percursos formativos advogados em cada país. Apesar de não termos frequentado nenhuma aula do curso de enfermagem enquanto estivemos a realizar o período de Erasmus, tivemos oportunidade de obter e analisar o Plano de Estudos deste Curso da Universidade de Växjö, que relativamente aos conhecimentos e compreensão que o aluno deverá apresentar no final do curso, refere que este deve:

 “Demonstrate knowledge of the subject’s scientific basis and insight into current research and development work as well as knowledge about the relationship between science and well-tried experience and this relationship’s meaning for carrying out the profession”;

 “Demonstrate knowledge about the planning, managing and co-ordinating of work practices in health care”;

 “Demonstrate knowledge about social conditions that influence the health of children, women and men”;

 “Demonstrate knowledge of relevant legislation”.

(Växjö University, 2006:2)

Tendo em conta os itens supracitados, compreende-se que a componente científica é aquela que é mais valorizada ao longo do curso, ficando um pouco de parte a preocupação com os conteúdos referentes àquilo que são as bases e os princípios da enfermagem, tão essenciais ao desenvolvimento de um espírito crítico, como aquele que é por nós apresentado.

Agora que damos por concluída esta reflexão, queremos afirmar que apesar de podermos ter deixado transparecer a ideia de que esta experiência de aprendizagem internacional nos deixou desiludidos e que tivemos poucos ganhos enquanto futuros enfermeiros, dado todas as críticas que apontámos, o que é verdade é que o nosso sentimento é precisamente o contrário. Dizemo-lo porque consideramos que soubemos em todos os momentos tirar partido das experiências que fomos vivenciando, quer daquelas que se afiguraram para nós como os bons exemplos, quer através de uma reflexão crítica sobre aquelas que considerámos serem os exemplos menos positivos da prática da enfermagem neste país. Como resultado de todos estes processos intelectuais que realizámos, terminamos este período com um sentimento de sucesso e com um reforço da confiança que depositamos quer em nós próprios, quer nos enfermeiros portugueses. Não temos agora quaisquer dúvidas em classificar estes últimos como uns dos melhores na prestação de cuidados de enfermagem holísticos, ainda que tenham de lidar diariamente com condições de trabalho difíceis, marcadas por escassez de recursos, quando comparamos com os existentes na Suécia. Para além disso, os enfermeiros nacionais têm de cuidar diariamente de uma população que é possuidora de uma cultura reivindicativa e baixa auto-estima, o que por vezes faz transparecer para a opinião pública nacional e internacional, que o sistema de saúde e os profissionais portugueses têm qualidade inferior aos dos outros países.

Quanto a nós, esta é agora uma falsa verdade!

BIBLIOGRAFIA

Gamboa, M, J (2008, Setembro 23). Relatório de audiência n.º 97/X-3.ª – Proposta de carreira de técnicos de ambulância de emergência. Lisboa: Assembleia da República

Hesbeen, W. (2000). Cuidar no Hospital: Enquadrar os cuidados de enfermagem numa perspectiva de cuidar. (Mª Isabel Baptista Ferreira, trads.). Loures: Lusociência (Obra original publicada em 1997)

Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). (2010, Abril 26). Plano estratégicos dos recursos humanos da emergência pré-hospitalar. Consultado em: 2010, Junho 21. Disponível em: http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/7E0D0D20-59C5-4002-BEBD-D28D2BBC924C/0/PlanoEstrategicoRecursosHumanosEmergenciaPreHospitalar.pdf

International Council of Nurses (ICN). (2010, Abril 27). Vision, Goals & Benefits of ICNP. Consultado em: 2010, Junho 20. Disponível em: http://www.icn.ch/pillarsprograms/vision-goals-a-benefits-of-icnpr/

Ordem dos Enfermeiros (2010). A Ordem. Consultado em: 2010, Junho 20. Disponível em: http://www.ordemenfermeiros.pt/ordem/Paginas/Historiada

OE.aspx

Växjö University. (2006, Novembro 7). Study programme syllabus – Study programme in Nursing, 180 Higher Education Credits. Växjö: Växjö University

Vieira, M. (2008). Ser enfermeiro – da compaixão à proficiência (2ª ed). Lisboa: Editora Unipessoal