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Porque morrem os Bombeiros?

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Esta é a questão que marcou o Verão de 2013. Após um mês fatídico em que faleceram 8 bombeiros em serviço, começaram a surgir um conjunto de questões, no sentido de atribuir culpados para estas mortes.

bruno neto

Autor: Bruno Neto

Enfermeiro

São várias as vozes que se têm levantado no sentido de empurrar responsabilidades, atribuir culpas. O presente artigo serve assim para partilhar a minha opinião e algumas experiências enquanto Enfermeiro a exercer funções numa Unidade de Queimados e enquanto Bombeiro Voluntário há mais de 10 anos, atualmente com o posto de Bombeiro de 2ª.

Apesar de integrar uma equipa de uma Unidade de Queimados, irei manter a confidencialidade relativa aos Bombeiros falecidos nesta e outras unidades.
A atividade de bombeiro, estará sempre associado à libertação de muita adrenalina e muitos riscos durante as intervenções exercidas num teatro de operações. Por maior, que seja o cumprimento das normas de segurança para cada situação, o risco mantém-se e poderá sempre acontecer, e o risco de queimadura num bombeiro é sempre elevado. Mas afinal que riscos são estes? O que condiciona um incêndio, neste caso nos incêndios rurais, mais conhecidos por florestais?

Durante estes 10 anos ao serviço dos Bombeiros, já estive em muitos teatros de operações, nomeadamente no combate a incêndios urbanos, rurais e industriais. Em todos estes cenários já senti a minha vida em risco, no entanto não serão estes riscos que me farão afastar desta missão. Assim, ao longo dos anos cada vez faz mais sentido para mim, a expressão “não sabemos se voltamos, mas vamos” já existiram. Situações em que tive necessidade de fugir do local, por a minha vida estar em risco. Recordo uma situação em que integrava uma equipa de uma viatura ligeira de combate a incêndios e, estávamos junto de uma fábrica, próximo de uma zona industrial. De repente o vento mudou de direção e foi ao nosso encontro e só tínhamos uma solução para aquela situação: Fugir. Outra situação, que recordo aconteceu, no momento em cheguei ao quartel depois do combate a um incêndio e que é solicitada uma ambulância par o local por existirem três bombeiros feridos, com queimaduras nos pés, que inicialmente sem causa aparente, mas que veio verificar-se que o subsolo existia manta morta em combustão, que ao passarem por cima desse local provocaria uma espécie de “combustão espontânea”.

Duas das causas, mais apontadas para os acontecimentos que ocorreram prendem-se com a falta de formação dos bombeiros e, com as mudanças súbitas do vento.

Relativamente à falta de formação dos Bombeiros portugueses tenho de discordar. Durante estes 10 anos de serviço tenho assistido a uma mudança. A cada ano que passa a formação tem cada vez mais destaque, atualmente é obrigatório assistir a pelo menos 350 horas de formação e um estágio para terminar a formação inicial. Qualquer bombeiro que vá combater um incêndio e que está na linha de fogo tem que ter pelo menos a formação base dos bombeiros. Recordo-me que quando fiz “escola” para a formação básica como bombeiro durou entre 9 a 10 meses, e incluía aulas teóricas e práticas, que decorriam 2 a 3 vezes por semana. Só após esta formação me foi conferido o posto de Bombeiro de 3ª Classe e, só a partir daí pude sair para as ocorrências.

A Mudança súbita do vento é uma das condições, integradas nas condições meteorológicas, que influenciam o comportamento de um incêndio. No entanto, não é a única. Destaco também as características dos combustíveis e as características do relevo.
Todos os fatores mencionados atrás são muito marcantes e vão influenciar a progressão de um incêndio. Contudo não podemos esquecer a condição humana.

Recordo nesta altura a Pirâmide de Abraham Maslow, porque quando um homem, um bombeiro parte para o combate a um incêndio florestal, a base da pirâmide é logo colocada em causa. Base esta, onde estão inseridas as necessidades fisiológicas básicas e, só após estas estarem satisfeitas é que se vai progredindo na pirâmide ate se chegar à auto-realização. Necessidades fisiológicas estas como: Comer, beber e descansar. Mas de que forma ficam comprometidas?

Quando se vai para um incêndio, por vezes para longe da área, com muitos quilómetros de distância e com longas viagens, o cansaço começa a surgir mesmo antes de se iniciar o combate ao incêndio propriamente dito. Depois tem de se combater o incêndio , durante horas consecutivas até que venha a rendição, quando a distância é maior, acontece uma vez a cada 2 dias, se não mais. Neste período, não há grande tempo para descansar. Nestas longas horas de trabalho árduo, a alimentação tarda em chegar e por vezes não chega nas melhores condições. Comida que deveria ser servida quente e já está fria, água nem sempre em abundância, bebendo-se assim pouco líquidos.

Todas estas situações levam à exaustão dos bombeiros, pelo excessivo esforço realizado. Num estudo recentemente divulgado pela Universidade de Leon, equiparam o desgaste de um Bombeiro com um atleta de alta competição. Este estudo realizado ao longo de 2 anos num grupo de bombeiros através da colocação de diversos sensores, tais como: registo de temperatura corporal do bombeiro, temperatura ambiente e, do equipamento, bem como ECG de esforço. Comparando os dados obtidos em laboratório e em situações reais. Chegaram à conclusão que todos os dados comparativos em relação a situação real seriam multiplicados por 30, com uma perda de 2 litros de água/hora e com frequência cardíaca média de 170ppm.

Para além destas situações, existem outras situações de grande relevo e que passam pela organização de um teatro de operações, não me referindo ao Comando, mas sim ao apoio logístico que passa pela colocação de meios adequados para dar resposta de forma a prevenir os possíveis incidentes. Isto é, temos de prever tudo o que poderá vir acontecer, para ter todos os meios necessários prontos a responder perante aquela situação. Por exemplo, se temos a dada altura um local com ventos fortes em que os combustíveis estão secos e com terrenos com grandes desníveis, terá que se prever que o vento poderá colocar os Bombeiros em risco elevado de ocorrerem incidentes, logo os meios têm que estar colocados em locais estratégicos, predefinidos, próximos daqueles locais críticos, de forma a responder o mais rápida, e adequadamente perante as situações.

Abordados alguns tópicos que considero relevantes, é chegado o momento de questionar: o que acontece quando apesar de cumpridas todas as normas de segurança, o acidente ocorre? Surgem então as queimaduras.

Recordo, antes demais a definição de queimadura de Edmar Maciel que a define como ” ferida traumática causada na maioria das vezes, por agentes térmicos, químicos, elétricos ou radioativos. Atuam nos tecidos de revestimento do corpo humano, determinando a destruição parcial ou total da pele e seus anexos, podendo atingir camadas mais profundas como tecido subcutâneo, músculos, tendões e ossos”. Esta pode atingir diversas estruturas, diversos locais e, com diversos estadios de evolução. Não perdemos, desta forma pensar que é só uma queimadura, mas sim algo mais e, terá implicações diretas e indiretas noutros órgãos, isto é, o fenómeno da queimadura vai implicar alterações no aparelho respiratório, circulatório, renal, gastrointestinal, entre outros.

Regressando novamente aos incêndios florestais a etiologia é térmica por contacto com o fogo, e tem uma evolução até 72 horas após a ocorrência. Associado ainda ao contacto com o fogo temos o risco de lesão inalatória, visto que o incêndio florestal pode ser definido como uma combustão, sem controlo no espaço e no tempo, dos materiais combustíveis existentes nas áreas florestais. A inalação de ar quente, combustíveis incandescentes, como é caso das cinzas e folhagens em combustão vai provocar a lesão inalatória. Este risco de lesão inalatória poderá levar a lesão pulmonar que vai constituir uma determinante da mortalidade.

Outro fator que vai influenciar a gravidade do doente, para além da idade, que é um fator que nunca poderá ser esquecido é a percentagem de área corporal afetada. Associado ainda a estes fatores, estão as patologias pré-existentes, que também irão interferir no prognóstico, com é o caso da Diabetes, Hipertensão Arterial, patologia cardíaca (Insuficiência Cardíaca), patologia respiratória crónica (DPOC), Acidentes Vasculares Cerebrais entre outras.

Deste modo, após a queimadura para além da reação local, muito conhecido, vai acontecer também uma resposta sistémica, que para alem da perda da função barreira da pele e da perda de fluídos, vai provocar a libertação de citocinas e outros mediadores vasoativos, assim com um hipermetabolismo. Este ultimo, caracteriza-se por uma resposta hiperdinâmica que leva ao aumento da temperatura corporal, aumento do consumo da glicose e oxigénio, aumento da formação de monóxido de carbono, glicogenólise, lipólise e proteolise. Por fim temos de considerar a diminuição da resposta à infeção.
Todas estas reações sistémicas vão provocar alterações aos mais diversos níveis: Hematológicos, Cardíacas, Renais, Imunológicas; Nutritivas; Eletrolíticas e,Termo-reguladoras. Se estas alterações não forem tidas em atenção e, tomadas as medidas adequadas poderá levar a complicações, por vezes difíceis de reverter e posteriormente, levar à morte do doente vitima de queimadura.

Pode-se então referir que o doente vítima de queimadura é muito mais complexo do que apenas uma simples ferida traumática e, possui alterações e um risco elevado de diversas complicações. Como tal, de forma a prevenir todos estes cenários, a resposta após a ocorrência de uma queimadura deve ser o mais célere possível, de preferência logo nas primeira hora e com uma correta abordagem, sem se perder tempo com pormenores desnecessárias para o momento.

Conforme já foi referido, existem outros fatores que deverão ter de ser tomados em consideração e, que vão interferir também no prognostico dos doentes, que são:

  • Constante hidratação das equipas de combate aos incêndios, como tal, deveria passar a fazer parte da carga da viatura líquidos bebíveis e alguns líquidos açucarados;
  • Alimentação adequadaao longo do período de combate aos incêndios, com validades longas e de fácil conservação e acomodação;
  • Proporcionar períodos de descanso regulares;
  • Desenvolver meios de localização precisa de cada equipa de combate a incêndios;
  • Melhorar a resposta dos meios de socorro, estabelecendo que a partir de 50 homens no combate a um incêndio deverá existir pelo menos uma equipa de ambulância de categoria SBV e, a partir dos 100 elementos deverá ser a equipa mais diferenciada SIV/ VMER, colocada em locais estratégicos de acordo com uma avaliação de risco do local;
  • Melhoria da formação das equipas de socorro nas respostas de um doente vitima de queimadura;

Tendo assim, em conta todos os fatores que vão interferir no prognóstico dos doentes vítimas de queimaduras (Bombeiros), é chegado o momento de refletir e responder à pergunta inicial. As mortes dos 8 Bombeiros no ano de 2013 porque ocorreram? Por diversas situações que podem ocorrer em simultâneo, nomeadamente, a progressão do incêndio; o tempo e a qualidade do socorro, pela dificuldade em chegar junto das vitimas e, pelo próprio processo de evolução da queimadura. Por tudo isto, não é possível uma resposta simples e direta da questão, visto se tratar de um processo em que estão envolvidas diversas variáveis, que atuam separadamente e de forma distinta, mas que em conjunto contribuem para este desfecho trágico.