O mito de que “morrem de forma aleatória” transforma-se na compreensão de que “são os grupos mais vulneráveis os mais atingidos”
ISBN: 972-8485-63-8
Autora: Cristina Crespo Carvalho
Nº de Páginas: 128
Formato: 15 X 21 cm
Editora: Formasau
Ano de edição: 2006
Prefácio
O testemunho deixado aqui pela cristina carvalho é genuíno.
Apreendem-se aspectos organizativos e de relacionamento humano vivido no terreno. Percebe-se a necessidade da avaliação regular das actividades profissionais e a solidificação do espírito de equipa, para compreender, tomar a atitude e partilhar. Porque o enfermeiro deve ser um humanista.
Conheci a Cristina Carvalho quando frequentava o Curso de Clínica Tropical para enfermeiros. Da conversa então tida fiquei com “aquela ideia de turismo humanitário”. Reconheçamos o engano. Passados alguns anos e ao terminar de ler as “palavras vividas” pela Cristina Carvalho sente-se um caminho percorrido.
Primeiro no caminho de “Ser Enfermeira num Mundo Global”. Depois no “Ser Enfermeira na Ajuda Humanitária”. E recordo as palavras de Kofi annan: o voluntariado constrói PONTES dentro das comunidades e entre as comunidades. Esta frase poderia resumir este livro, se colocarmos a palavra responsáveis depois de PONTES.
Pontes dentro das comunidades pela preocupação de testemunho, de organização, de transmissão de conhecimento aos colegas enfermeiros “da experiência” no humanitário. Para que “quem quiser ir” não cometa idênticos erros ou enganos. Para que saiba o impacto consequências que estas coisas do humanitário reflectem no futuro de cada um que participa, pelas mais variadas razões.
Pontes entre as comunidades pela panóplia de sentimentos, por vezes contraditórios, que o contacto com outra realidade mais pobre nos trás.
Responsáveis porque, como se pode ler, “é importante compreender que tudo o que fazemos tem consequências”. A enfermeira “de terreno” apreendeu, no seu caminho, os princípios básicos da honestidade e da dignidade associados à responsabilidade da profissão, tentando evitar os erros de “relação com os outros” banais e descartáveis, que violam as referências éticas e culturais.
É na tentativa de compreender a acção noutras comunidades e culturas, que a Cristina Carvalho lembra, numa descrição não exaustiva, a história do humanitário. Afinal, só podemos “ser humanitário”, quando conhecemos como chegamos até aqui. Partimos da vontade de prestar às vítimas dos conflitos e das catástrofes assistência médica e algum conforto. Chegamos ao mundo dos nossos dias, que transforma a acção humanitária em algo mais complexo na sua compreensão e dimensão social, indissociável do desenvolvimento humano.
Ressalta ainda e progressivamente, a descoberta entre o “mito” e a “realidade” do trabalhador humanitário, num intercalar de texto “teórico” com o verificado “na prática”. É assim que os mitos se transformam em realidade.
O mito do “é necessário prestar apoio médico” transforma-se no “afinal a população sabe velar pelas suas necessidades imediatas”.
O mito do “nós sabemos como fazer” é transformado no “temos que fazer com eles”.
O mito “os pobres desenvolvem comportamentos anti-sociais” transforma-se na convicção que “a maioria das pessoas responde generosa e espontaneamente”.
O mito de que “as comunidades estão desamparadas e não sabem assumir a responsabilidade do seu desenvolvimento” transforma-se no “é possível achar muita força nova e espontânea para fazer coisas”.
O mito de que “morrem de forma aleatória” transforma-se na compreensão de que “são os grupos mais vulneráveis os mais atingidos”.
Sendo a saúde indissociável dos direitos humanos, a Cristina Carvalho vai-se consciencializando do significado desses mesmos direitos. Afinal, lidar com a pobreza do “lado de lá” e conhecer a riqueza do “do lado de cá”, agita consciências. E como dizia Aristóteles “a riqueza não é, evidentemente, o bem que procuramos, pois ela é útil apenas para obter outra coisa qualquer”. E como “os sistemas são constituídos por pessoas” surgem as ambiguidades que exigem ao profissional de saúde, que trabalha no humanitário, outros conhecimentos transversais, como geopolítica, antropologia, sociologia, psicologia, gestão, entre outros.
Porque para fazer Cooperação ou Ajuda Humanitária é imprescindível ter um conhecimento profundo dos objectivos da missão, da função que se vai desempenhar, de ter espírito de equipa, de sentido de entreajuda e um elevado sentido de responsabilidade. Mas acima de tudo disponibilidade de tempo sem olhar a aspectos económicos.
Esta dimensão da aldeia global em que vivemos, exige que a integração dos vários saberes seja de novo essencial. Embora o técnico e a tecnologia da saúde sejam necessários, eles fazem parte dum contexto sócio-económico envolvente, onde o acesso à habitação condigna, a água potável, a nutrição adequada, a educação e múltiplos outros factores, também são saúde.
Dar a conhecer, no singular, estas “palavras vividas” de acção humanitária, é divulgar a gestão das expectativas de quem tem intenção de partir, das motivações, dos riscos, do quotidiano no humanitário. Ajuda, ainda, na preparação do viver em condições ambientais adversas e principalmente a aceitar a diferença na diversidade de culturas. Que a edição deste livro conduza à reflexão, de muitos outros enfermeiros ou outros profissionais de saúde sobre a sua participação, ou não, na acção humanitária, à escala da humanidade.
João Luis Baptista
Professor de Saúde Pública
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade Nova de Lisboa