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Ordem, para que te quero?

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O enfermeiro é quase como o palhaço no circo: vende os bilhetes, faz malabarismos, mostra as cabrinhas a correr, faz de apresentador, no intervalo vai a correr vender pipocas… E depois é avaliado como palhaço, pelo dono do circo!

 
“Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.”

 

Fernando Pessoa diz muito do que sinto quando penso nas tantas e tão complexas questões que interessam à Enfermagem, perante as quais a tentação é não pensar mais.

 

Mas é apenas uma tentação. Mais cedo ou mais tarde, há uma necessidade de partilhar o pensamento e havendo essa liberdade de o fazer, então não deixemos que passe a oportunidade.

 

Este ano é de eleições (também) para a Ordem dos Enfermeiros.

 

Estamos em período pré-eleitoral e há questões que não estão claras para todos; pagamos para poder trabalhar, damos o nosso nome, temos associada a profissão que exercemos àquela organização; como membro temos obrigações legais, éticas e deontológicas, e somos chamada a contribuir para eleger quem vai representar a classe de enfermagem a este nível.

 

Mas até que ponto a existência de uma Ordem profissional interessa aos enfermeiros?

 

… Ou seja, e dito por outras palavras, eu, enfermeira da prestação de cuidados que trabalha (pelo menos) 40h/semana ao preço da uva mijona, em condições que violam sistematicamente os pressupostos da qualidade dos cuidados de enfermagem reconhecidos internacionalmente e emanados da Ordem dos Enfermeiros, e que sou avaliada com base em critérios de um mundo do “faz de conta”, interrogo-me:

 

Ordem, para que te quero?

 

Antes de continuar, sinto necessidade de fazer duas declarações de interesses:

 

1 – Não vivo a enfermagem como uma “paixão”, uma “vocação”, nem sou do tipo “amo a enfermagem”, “me dê um like só porque sou enfermeira”, ou “enfermagem cuida, medicina trata”,… Nada disso. O meu gosto pela profissão tem a ver com a oportunidade de estar na ciência, aceder à tecnologia, à cultura, à ética, à estética, ao auto conhecimento, à intuição, à dimensão social da vida em sociedade, à política, e até a aproximar-me do que me transcende, tudo o mesmo tempo… Por isso são imensas as coisas “verdadeiramente metafísicas” que surgem a partir de pensamentos como a formação dos enfermeiros, a teoria e as práticas; os discursos (nossos e dos outros) acerca da nossa prática clínica, o olhar sobre o que somos e fazemos (que vai do reconhecimento, à usurpação de funções, passando pela tentativa de conter a evolução natural da profissão); pensamentos sobre os nossos pensamentos e conhecimentos, sobre experiências de vida, responsabilidades, auto conhecimento; sobre a forma como nos relacionamos, as hierarquias formais e informais, as relações de poder, os lóbis, as mudanças que vão acontecendo ou que já deveriam ter ocorrido, o ascendente feminino da profissão e uma certa fragilidade que nos remete muitas vezes para uma timidez quase submissa ou para uma arrogância despropositada, a necessidade de calar ou pactuar, agradar, fazer parte e ser aceite… Sinto-me privilegiada por poder aceder à natureza humana por este prisma e é este o interesse que tenho quando penso na enfermagem.

 

2 – Não pertenço a órgãos da Ordem nem sindicatos, não sou sindicalizada, não votei nas últimas eleições para a OE (não tive em quem votar), não participo nas Assembleias da Ordem (tenho uma má imagem das mesmas e uma folga por semana), não tenho as quotas em dia (ganho mal e gosto de saber muito bem onde é gasto o meu dinheiro), não tenho qualquer interesse pessoal na Ordem dos Enfermeiros; acompanho as candidaturas em curso, muito embora não interesse para o âmbito desta reflexão o que penso e como me posiciono em relação às mesmas.

 

Dito isto estou ainda mais à vontade para voltar a perguntar: Ordem, para que te quero?

 

Uma profissão (requer formação académica) é diferente de um ofício (é uma arte). Enfermagem não é só arte, não é só intuição, não se aprende sozinho nem com um único mestre; exige formação de nível superior, de vários níveis, diversificada e abrangente, formação essa que também “protege” a própria profissão. Esta qualificação profissional específica e que não é comum a nenhuma outra profissão, a par da promoção do interesse público, são o que permite a regulamentação e a regulação do exercício profissional. O interesse público aqui é indiscutível e a enfermagem desempenha um papel primordial na concretização dos cuidados de saúde; tem vindo a conquistar uma autonomia crescente e maior liberdade de intervenção, com riscos inerentes à concorrência, às condutas que exigem códigos de ética e legais para regulamentar a profissão.

 

Há um interesse público a defender e o Estado reconhece capacidade aos enfermeiros de se associarem e auto regularem. Isto é um sinal de maturidade da profissão, na medida em que estes profissionais de saúde estão a assumir, legalmente mandatados pelo Estado que lhes reconhece essa capacidade, a proteção do cidadão de práticas inadequadas, a proteger-se a si mesmos quer ao nível do exercício profissional, quer da formação académica.

 

As Ordens são obrigadas a colaborar com o Estado, respeitar os princípios gerais do Direito Administrativo e estão sujeitas ao controle do Provedor de Justiça, mas para concretizar os seus desígnios, devem representar e defender a profissão, apoiar os seus membros, regular o acesso e exercício da profissão; definir o código deontológico, ter ativo um conselho jurisdicional, e devem estimular a atualização dos profissionais. Estas dinâmicas podem ser aproveitadas como forma de contrariar a fragmentação da própria classe e manter a sua integridade contra pressões internas e externas.

 

Tempos houve em que não existia Ordem dos Enfermeiros e quando se falava no assunto era algo distante, quanto muito, e mais tarde, visto como um milagre que viria transformar a enfermagem, viria fazer um upgrade do estatuto e prestígio da profissão, uma espécie de vaidade profissional para uns, (mais) uma colagem aos médicos para outros … O exercício profissional era diferente do que conhecemos hoje. Estamos a falar num tempo em que poderia ter existido um vazio tão grande na enfermagem (e na saúde em geral), que (quase) tudo poderia ter sido permitido: há pouco mais de 2 décadas poderia ser aceitável dividir o turno ao meio entre 2 enfermeiros; trabalhar tão à tarefa, tão à tarefa… que um dos enfermeiros poderia ficar responsável pelas “notas”; os registos eram feitos num livro de ocorrências cama 1 – sem queixas, cama 2 – sem queixas, cama 3 – sem queixas, … cama 38 – sem queixas, cama…; podia ser usada uma mesma pinça para vários pensos, reutilizar luvas até ficarem rotas; o enfermeiro poderia ser verdadeiramente pau para toda a obra: gessos, ecg’s, colheitas de sangue, rx, suturas, preencher cabeçalhos de requisições médicas, étc.; um enfermeiro poderia até assegurar turnos inteiros sozinho em serviços de internamento com dezenas de doentes; a dor, escaras, estado nutricional, infeção, procedimentos técnicos,… eram aspetos dos cuidados pouco interessantes. Qualquer pessoa que conseguisse “dar uma injeção” era enfermeira e havia auxiliares de enfermagem. Muitas coisas se poderiam passar quando havia este vazio.

 

Digamos que, em pouco mais de duas décadas, a enfermagem em Portugal mudou. Para tal contribuiu a melhor regulamentação da atividade profissional e a existência de mecanismos de regulação profissional como a Ordem dos Enfermeiros. Mas mudou em que sentido? É que se sente e comenta uma grande dissonância entre o que a profissão mudou, entre o que se diz que mudou, entre o que se gostava que tivesse evoluído; e nem sequer mudou da mesma maneira em todo o lado para todos, i.e., não se sente uma evolução consistente da profissão. A realidade é bem diferente do que se pinta sobre ela e houve um potencial que não foi aproveitado.

 

Promoveu-se uma cultura do “faz de conta”, do pertencer a grupos disto e daquilo, de relatórios de projetos e projetos de relatórios. A enfermagem já estava avisada desde o fracasso do processo de enfermagem que gastou horas em trabalho vão, resmas de papéis, para rigorosamente nada; mesmo assim, não aprendeu.

 

Continuam a persistir práticas de desvalorização do valor dos enfermeiros, literalmente remetidos para tarefas que deviam ser realizadas por outros profissionais.

 

As expectativas de valorização profissional (carreira / valorização de competências), reconhecimento do trabalho (valorização económica / respeito por direitos civilizacionais conquistados) e condições adequadas ao exercício dos enfermeiros (ratios, aspetos logísticos, liderança e espaço de intervenção na equipa de saúde) ainda não se concretizou. Nestes aspetos há um retrocesso inegável da enfermagem.

 

É certo que a Ordem não pode ser encarada como uma espécie de “sindicalismo público”, pois isso colocaria por exemplo em questão a liberdade constitucional se ficasse inviabilizado o exercício da profissão a quem não desejasse pertencer a uma organização sindical, mas o que se exige hoje aos enfermeiros não é possível de concretizar sem que as condições de trabalho acompanhem essas exigências. Como é que se separa a exigência de uma correta realização de exaustivos registos informatizados, preenchimento honesto de escalas, avaliação verdadeira do doente, intervenções de qualidade para responder às necessidades identificadas, promoção de autocuidado, reabilitação, envolvimento da família, cuidados preventivos e educação para a saúde em todos os níveis de cuidados, e muito mais, se o enfermeiro não é valorizado e se impera a cultura do “faz de conta”? Quem é que é suposto exigir condições para que se cumpram as exigências que têm por detrás a mão invisível da Ordem dos Enfermeiros? Tendo a Ordem conhecimento do incumprimento das dotações seguras, o que é que eu, enfermeira, posso esperar da Ordem quando recebo um turno de SO/urgência, com corredor cheio, doentes monitorizados e estado crítico, e 30 doentes para 2 enfermeiros? E vou ser avaliada por critérios baseados numa cultura de cuidados, imposta pela Ordem dos Enfermeiros, que impõem a realização de tarefas e atividades completamente descontextualizadas das condições em que trabalho? Sinto que neste momento temos uma Ordem que se distancia dos contextos clínicos e de ensino, de uma forma quase escandalosa, ao impor métodos de trabalho que não são possíveis de concretizar de forma correta e cujos benefícios não são conhecidos dos enfermeiros. O enfermeiro é quase como o palhaço no circo: vende os bilhetes, faz malabarismos, mostra as cabrinhas a correr, faz de apresentador, no intervalo vai a correr vender pipocas… E depois é avaliado como palhaço, pelo dono do circo!

 

É por isto que de vez em quando tenho este “pensamento fundamental”:
Ordem, para que te quero?

 

Será que a Ordem dos Enfermeiros foi, é ou continuará a ser ou não, uma mais-valia para a profissão e para o cidadão?

 

A existência de ordens profissionais pode aumentar a eficiência (descongestiona o Estado e os custos são assumidos pelos profissionais), promover teoricamente a eficácia (mais flexibilidade e agilidade na resolução de problemas, melhorar a implementação de praticas reguladas e maior adesão a regras internas à profissão do que impostas de fora); o Estado fica mais “protegido” de ataques diretos que teria na regulação direta e os profissionais são supostamente poupados a um regulamento mais pesado que normalmente caracteriza as medidas estatais. Um dos potenciais benefícios para a profissão é a possibilidade de fazer lóbi, que não tem mal nenhum e é uma estratégia comum noutras profissões. Quem suporta os custos desta forma de associação para a regulação profissional são os enfermeiros, cujo desinteresse, sentimento de penalização por terem que pagar a quota, afastamento em relação ao que lá se passa, a discordância com a ostentação, alheamento em relação ao processo eleitoral… pode ser o início do desaparecimento da Ordem dos Enfermeiros. Isso poderá representar um risco de desregulação (maior do que o que existe) e estaria aberto o caminho para a aplicação das leis de mercado ao exercício da enfermagem de forma completamente selvática (mais ainda do que já se verifica).

 

Uma das alternativas a esta regulação colegial será o exercício livre. Caberá a outros profissionais a definição do trabalho e o exercício do poder disciplinar sobre os enfermeiros.

 

Outra possibilidade será a regulação estatal de “funcionário público” como ocorria em Cuba, China e na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, representando o oposto da autonomia que o Estado dá às profissões para se auto regularem.

 

Em ambos os casos haveria uma menor probabilidade de esse sistema ajudar os profissionais a tomar consciência das suas capacidades de progresso. A probabilidade de se perpetuarem os paradigmas vigentes tenderia para o infinito e a tendência para a conformidade e conformação com os limites da profissão estaria garantida.

 

Menos evolução, mais estagnação, mais resignação e mais submissão poderia interessar a alguns, não aos enfermeiros nem ao cidadão.

 

Face a tudo isto, parece-me um “pensamento fundamental” dizer que é importante que nos organizemos internamente em vez de serem outros (não falta quem o queira) a fazê-lo por nós. Mas para tal é preciso que a profissão esteja recetiva à auto-regulação, que se crie uma cultura com a qual os enfermeiros se identifiquem, tenham acesso à sua Ordem, tenham uma Ordem próxima de quem estuda e trabalha, público, privado, social, cooperativo, voluntariado, ou no estrangeiro. Uma Ordem que seja o espelho da profissão, que não exista para vaidade de alguns, que se apresente de cara lavada e mangas arregaçadas para devolver à enfermagem a expectativa de valorização de que todos precisamos. Uma Ordem que não olhe para o enfermeiro de forma interesseira.

 

Para tal temos que estar atentos às propostas, aos debates, àquilo que vai ser prometido, a quem se chega à frente nas próximas eleições. E depois decidimos se queremos continuar ou não com a Ordem dos Enfermeiros.

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