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Neo-Natal-ogia: nasceu o menino…

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Uma historia (de) na vida de uma enfermeira

Quem já trabalhou ou trabalha ainda em serviços de Pediatria, Urgência Pediátrica e Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, como é o meu caso, embora em diferentes contextos hospitalares, vivênciou ou vivência, inúmeras vezes experiências, algumas gratificantes outras não tanto, no seu dia-a-dia profissional. Não é raro, pois, que algumas dessas experiências, fiquem gravadas na nossa memória. Na realidade, é por esta altura do ano que me recordo de um episódio que sucedeu comigo, no início da minha carreira.

Num turno de tarde do mês de Novembro, antes daquele Hospital passar a ser S.A, entrou na Neonatologia um RN prematuro com um quadro clínico de asfixia moderada, o qual toda a equipa multidisciplinar, após uma intensa luta, intervencionando, a nível de todos os cuidados diferenciados necessários, conseguiu tornar mais compensada, de forma a que com o passar das horas, a situação do bebé fosse evoluindo positivamente. Contudo, o bebezinho apresentava como patologia de fundo uma trissomia 21 ou síndrome de Down.

Praticamente no final do turno o pai, visivelmente perturbado, já tinha acabado de acompanhar o bebé sabendo da situação clínica que o seu filho apresentava, a avó materna, muito perturbada, chega perto de uma médica e diz: ” Doutora, o pai, quando nasceu também era achinesado, como o filho…”.

A minha colega e eu “passamos o turno” às colegas do turno da N. por volta das 24h. Alertamos as colegas para a gravidade da situação e para a possibilidade da recusa familiar perante o diagnóstico de síndrome de Down, visto que já não era o primeiro caso que acontecia.

No dia seguinte, quando fui fazer N., as colegas transmitiram-me que o bebé estava muito melhor, mas a não ser a equipa de saúde, mais ninguém se tinha interessado pelo bebé, pois os familiares, incluindo o pai e a mãe não o tinham ido visitar.

“A família é uma complexa rede de interacções, o comportamento de um membro afecta o dos outros (…)”(Subtil,1995,p.10).

Naquele preciso momento fiquei revoltada com aquela situação. Mas é tão fácil para nós, que estamos do outro lado, o facto de nos sentirmos revoltados com a posição da família perante o nascimento de uma criança com doença crónica, sem nos lembrarmos, no momento que a família tem que “digerir” a “fase da crise” (que consiste em enfrentar a realidade).

Esta fase decorre em cinco etapas (Marques e col., 1991):

  • a etapa do impacto – na qual se evidenciam o choque e o desespero;

  • a etapa da desorganização funcional – caracterizada pelas dificuldades que os membros da família sentem em manter o papel habitual;

  • a etapa da procura de uma explicação – os familiares preocupam-se em compreender o processo da doença, através da informação científica, ou então procurando estabelecer relações entre a doença e antecedentes e vida ou saúde/doença e a influência genética;

  • a etapa da pressão do meio social – que pode coexistir com as etapas anteriores e é bastante visível quando a família procura opiniões em outros médicos;

  • a etapa da perturbação emocional – surgem alterações nos membros da família de modo a dar resposta a alterações de vida familiar em que pode estar em causa perdas pessoais.

Aquela criança, iria ser uma criança com patologia crónica para toda a vida. A família tem que ter um tempo para poder assimilar esse novo fenómeno para o qual não estava preparada (Marques e col., 1991; Jorge, 2004).

Dirigi-me à incubadora onde estava o Zézinho, nome que carinhosamente lhe tínhamos colocado e observei que ele até tinha uma carinha tão ternurenta, era tão pequenino, tão indefeso, que culpa teria a criança de ter nascido com aquele síndrome?

Naquele momento pensei que quando saísse do serviço, por volta das 8h30´, após a “passagem do turno” passaria pela Obstetrícia para falar com aquela mãe, que fisicamente, já sabia estar recuperada, mas psiquicamente não deveria estar nada bem e compreendia-se o porquê.

As minhas colegas tentaram dissuadir-me, também “uma simples conversa que mal poderia trazer ao mundo?” afirmava eu convicta “e se a psicóloga está de férias como resolvemos esta situação?”. E então, ainda receosa, falei com a mãe do Zézinho, senhora muito deprimida, depois de a ter ouvido com atenção. Disse-me que tinha idealizado um bebé bonito, saudável (e abraçada a mim chorou, chorou … ) e que o marido lhe dissera que o bebé era tão fraquinho que parecia feito de vidro (?) . Respondi-lhe que tinha um bebé pequenino, que estava lutando para sobreviver, mas que tinha um menino com muita genica, que era isto, que era aquilo, que era o bebé dela, tivesse o síndrome ou não, e que sentia muita falta da mãe dele, … até me admirei com que o inventei, na altura, para dissuadir a senhora de ficar no quarto e tomar a decisão de ir ver o filho, sem ela se aperceber disso.

Passados dois dias quando regressei à Neonatologia, constatei que a mãe começou a visitar regularmente o filho. As minhas colegas tinham pedido ajuda às mães dos outros bebés para apoiar esta mãe, e sobretudo ajuda a uma mãe que tinha um filho com o mesmo síndrome e se disponibilizou a visitar este bebé.

Actualmente o Zézinho tem cinco anos e frequenta um Jardim de Infância com boa evolução. É uma criança muito dócil e tem muitos amigos.