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Não o fazemos por menos

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Portugal tem apresentado taxas de infeções hospitalares acima da média europeia com custos muito elevados.

No âmbito de um dos três Desafios Gulbenkian definidos no relatório Um Futuro para a Saúde, foi assumido por 12 hospitais públicos com a Fundação Gulbenkian e em parceria com o Institute for Health Care Improvement dos Estados Unidos, o compromisso para reduzir em 50%, em três anos, a ocorrência de infeções hospitalares.

As “infeções hospitalares” ou “nosocomiais” designam-se atualmente por infeções associadas aos cuidados de saúde (IACS’s) e são adquiridas durante a prestação desses cuidados, em vários locais como hospitais, centros de saúde, unidades de cuidados continuados, lares para idosos, clínicas, étc.

As bactérias, vírus, fungos e parasitas estão no ambiente e na pele e mucosas, vias respiratórias e aparelho gastro intestinal. Os microrganismos que vivem no corpo ajudam na proteção mas também podem causar infeção tal como os que são transmitidos do exterior, quando há desequilíbrio entre a flora e as defesas, existe ambiente para o micróbio se desenvolver, há uma porta de saída, há um meio de transmissão e há uma porta de entrada. A transmissão pode ser por contacto físico direto (pessoa) ou indireto (instrumentos, alimentos, instrumentos, medicamentos, materiais, água…), via aérea e gotículas, e por vetores (pouco importantes nas IACS’s).

Tem sido estimado que 5 a 10% das admissões hospitalares possam desenvolver IACS’s, situação que em unidades de alto risco pode atingir 1/3 dos doentes e uma mortalidade de 44%.

As IACS,s são um problema de segurança, com custos pessoais, económicos, sociais; nos hospitais implicam maior ocupação de camas, maior afetação de pessoal, realização de mais exames complementares de diagnóstico e terapêutica, gastos com mais antimicrobianos e outros medicamentos, sofrimento, incapacidade e são uma das maiores causas de morte em todo o mundo. Não conheço dados relativos a este problema nos enfermeiros (as IACS’s incluem as infeções contraídas pelos profissionais durante a prestação de cuidados), mas há vários casos de infeções urinárias, gastroenterites (com clostridium difficile inclusive), conjuntivites, pneumonias e outras infeções das vias aéreas,… 

A existência de antibióticos é uma falsa segurança. Os próprios antibióticos podem contribuir para aumentar o risco de desenvolvimento se infeções e estirpes multirresistentes. O Reino Unido acaba de lançar o alerta para a possibilidade de, no caso de surgir uma super bactéria para a qual não haja antibióticos, morrerem milhares de pessoas com procedimentos cirúrgicos relativamente simples.

Também o ambiente de cuidados – cada vez mais complexo, com procedimentos mais invasivos, mais medicação imunodepressora, uso excessivo de antibióticos,… condições de trabalho e algumas práticas instituídas – representa um risco acrescido para desenvolver IACS,s.

O risco, embora mais elevado em doentes imunodeprimidos, já infetados, a utilizar antibióticos, submetidos a técnicas invasivas, mais dependentes, de idade avançada, com doença crónica,… existe em todos os momentos dos cuidados.

Os programas de controlo de infeção são importantes e todos os princípios primordiais emanados do CDC se aplicam a todos os doentes, independentemente do diagnóstico médico, dos fatores de risco, do presumível estado infecioso.

As tendências epidemiológicas identificam as infeções urinárias, da corrente sanguínea, das feridas operatórias e as pneumonias associadas ao uso de ventilação invasiva como as mais prevalentes. É sobre estas áreas que incidirá o programa “STOP infeção hospitalar”. Tudo o que se fizer nestas áreas terá impactos positivos em todas as outras áreas não abrangidas.

O que se fez, o que se faz e o que falta fazer

As IACS’s têm uma origem multifatorial; a sua abordagem terá que ser multidimensional.

O foco tem sido a prevenção na transmissão dos micróbios: precauções básicas como higiene das mãos, precauções de isolamento, limpeza e desinfeção, ambiente e dispositivos, e na triagem de resíduos. Nós, enfermeiros, não estamos perante nenhuma novidade. Todas estas preocupações fazem parte do nosso trabalho, quer nos cuidados diretos, quer na gestão do ambiente. Já quando Florence Nightingale foi para a atual Istambul assistir feridos de guerra, e se deparou com um hospital onde a mortalidade atingia uma taxa de 42%, introduziu mudanças no ambiente, melhorou as condições sanitárias, de limpeza, iluminação natural, ventilação, controle de odores, esgotos, lavandaria, cozinha, defendendo a importância da limpeza e higiene, e reduziu para 2,2% a mortalidade.

Temos hoje, no âmbito das políticas institucionais, projetos, normas, orientações práticas, folhetos, cartazes, etc., mas talvez ainda não tenhamos ultrapassado a distância entre o que se pretende fazer, o que se diz que se faz, o que se pode e deve fazer, e o que realmente se faz.

Ao nível da formação dos profissionais de saúde, quando se começou a levantar a questão das IACS’s houve muita formação teórica e prática, mas talvez não tenhamos adotado as melhores estratégias de sensibilização a todos os profissionais para uma maior adesão às normas propostas, no sentido de tomarem consciência dos riscos que o não cumprimento das recomendações representam para si, para os outros profissionais e para os doentes.

Foram implementadas medidas simples que salvam vidas: esta frase é-nos muito familiar e está associada à importância da higiene das mãos. As mãos dos profissionais de saúde sofrem uma colonização transitória e tornam-se o veículo mais comum de transporte de microrganismos do próprio doente para zonas do corpo normalmente estéreis, ou de outros doentes e do ambiente. Assim, a higiene das mãos é uma precaução básica, largamente comprovada e amplamente divulgada nos serviços, mas ainda com margem para melhorias.

Ao mesmo tempo que se colocou na agenda dos serviços a questão da higiene das mãos, divulgaram-se as recomendações de boas práticas para minimizar o risco no uso de dispositivos invasivos: critérios rigorosos para a sua utilização, cuidados na colocação e manutenção, e retirada dos mesmos o mais precocemente possível. No entanto, e apesar dos riscos conhecidos, nem sempre os pressupostos que garantem a maior segurança são respeitados; seria extenso o rol de exemplos que poderia enumerar sobre a sua utilização fútil e manutenção deficitária.

Ainda com vista à prevenção e controle da transmissão de micróbios, foram enfatizados os cuidados a ter na limpeza e desinfeção de dispositivos médicos, no uso correto de antibióticos, na descontaminação de equipamentos, na higienização ambiental hospitalar, no uso de EPI’s, uso e recolha de perfurantes e cortantes, boas práticas na recolha e transporte de espécimes, isolamento correto, triagem e acondicionamento de resíduos, transporte de doentes, controle de visitas… entre outras, que talvez beneficiassem com uma monitorização que permitisse aferir até que ponto existe espaço para melhorar.

Porém, e apesar das medidas referidas, continuamos com taxas elevadas de infeção.

Talvez falte assumir que a presença de infeção é também reflexo de outros problemas do sistema e do processo de prestação de cuidados de saúde que aumentam o risco de desenvolvimento de IACS’s, que, enquanto não forem discutidos e resolvidos, continuaremos a arrepiar caminho no combate às infeções.

Assumir isso implica percorrer o sistema desde o patamar das políticas de saúde, passando pela administração das instituições, pela gestão dos serviços e a gestão clínica, pelos problemas da liderança, do poder e da autoridade, pela estrutura dos serviços, a disponibilidade e qualidade de recursos, o doente e o processo de cuidados, as competências e atitudes dos profissionais de saúde, a valorização do trabalho, etc., tudo aspetos que se interligam, e sobre as quais há muita reflexão a fazer e questões por responder:

  • Que progressos se fizeram em relação à satisfação das necessidades decorrentes do estado clínico do doente e ao processo de cuidados de enfermagem?
  • Como tem sido aproveitado o potencial que os enfermeiros especialistas têm de mobilizar as suas competências e desempenhar um papel fundamental não só na prevenção da transmissão destas infeções, como na promoção das melhores condições para minimizar o seu desenvolvimento?
  • Quando é que o sistema de cuidados de saúde assume que é muito vantajoso valorizar o papel do enfermeiro e os cuidados de enfermagem pois são estes os profissionais que estão em posição chave para, junto do doente, prestar cuidados – cuidados de reparação e cuidados de manutenção – que permitem aumentar os mecanismos de defesa do doente e as suas capacidades físicas e psíquicas, o ajudam a manter o melhor funcionamento do corpo, protegendo-o de infeções?

Os cuidados de enfermagem são fundamentais: autónomos ou interdependentes, todos são importantes na promoção; na prevenção primária, secundária, terciária, e de iatrogenias; na reabilitação, na paliação.

Os cuidados de enfermagem autónomos são primordiais para minimizar o risco de contrair infeções. 

São cuidados necessários, por exemplo, para uma adequada nutrição e hidratação, aspetos que, quando negligenciados contribuem, entre outros problemas, para a debilidade do sistema imunitário, enfraquecimento muscular, atraso no processo de cicatrização, desidratação… com implicações no risco de infeção.

A alimentação e hidratação são áreas que requerem a intervenção do enfermeiro, quer nos cuidados diretos, quer na supervisão das tarefas que delega a auxiliares, estudantes, voluntários ou familiares. Não se trata apenas de “dar comer aos doentes”, “dar água”. Trata-se de uma área específica e requer enfermeiros para a sua gestão, quer na identificação de necessidades como intolerâncias, nas restrições em doentes diabéticos, pausas alimentares impostas por tratamentos ou exames, alimentação por via artificial, na transição, adequação das dietas,… no planeamento dos cuidados como a gestão de horários, administração correta dos alimentos, posicionar corretamente o doente, dar tempo para o doente deglutir, estar atendo à aspiração de conteúdo alimentar para a árvore traqueobrônquica, orientar familiares, auxiliares, voluntários, ensinar, treinar para o autocuidado,…, na avaliação de todo o processo, particularmente em doentes dependentes.

Apesar da importância destes (e doutros) cuidados de enfermagem, muitas vezes, pelas mais diversas razões, o enfermeiro não assume a liderança que deve ter no processo de alimentação.

Lavar-se, levantar-se, mover-se e deslocar-se são também exemplo de necessidades que se relacionam com o risco de infeção e onde é essencial o cuidado de enfermagem autónomo.

Algo tão rotineiro e óbvio como a higiene do doente é, por exemplo, uma das áreas em que existe toda a vantagem em que os cuidados sejam prestados com cuidado, sejam completos, não sejam abreviados, mecanizados,…. Haverá contaminação bacteriana e por fungos originada na cavidade oral? Serão as mãos dos doentes também um veículo de transporte de micróbios entre zonas do seu próprio corpo, em doentes dependentes, muitas vezes agitados? Poderá a deficiente higiene da pele e genitais favorecer o desenvolvimento de condições para ocorrer infeção?

A mobilidade requer a intervenção do enfermeiro, na ajuda, no incentivo, no ensino, no treino, na vigilância… são inúmeros os benefícios da mobilidade e muitos deles com implicações no risco de infeção: conjuntamente com uma hidratação adequada, o enfermeiro pode ajudar minimizar a estase de secreções brônquicas no doente que não se mobiliza adequadamente ou que tem a sua ventilação comprometida pela dor que não está devidamente controlada; a mobilidade contribui para melhor a circulação sanguínea, a respiração, ajuda a promover maior autonomia e bem-estar, a prevenir úlceras por pressão,… Nos idosos mais debilitados, o sistema respiratório requer uma atenção maior na fluidificação, mobilização e aspiração de secreções, no ensino ao doente sobre técnica de tossir e respiração profunda, nos cuidados na alimentação – tempo, cansaço, descompensação cardíaca, aspiração de vómito, engasgamento,…

Todos estes cuidados autónomos de enfermagem que exemplifiquei e muitos outros aparentemente simples, mas essenciais, concorrem para minimizar as condições físicas e psicológicas que favorecem a infeção. Ainda assim, sendo tão importantes, ficam, não raras vezes, e por diversas razões, aquém do desejável. Os cuidados associados às funções fisiológicas básicas, ainda (ou cada vez mais?) tendem a ser desvalorizados, mas esse não é o caminho da enfermagem. Para além do muito que somos capazes de fazer, não podemos abandonar o corpo, a pessoa, tudo o que a rodeia no momento em que não tem capacidade nem conhecimentos para se valer a si mesma. Porém, há que tomar consciência que a excelência dos cuidados tem a ver, não apenas com o que se faz, mas como se faz. Por isso é necessário que o enfermeiro possa realizar o seu trabalho sem pressão constante, despendendo o tempo necessário a cada tarefa, não abreviando os gestos, privilegiando o modo mais adequado a cada caso, incluindo a componente emocional e social na relação; é preciso que possa respeitar a melhor sequência dos cuidados, que consiga vigiar adequadamente os sinais de infeção; que promova o repouso e conforto do doente, que tenha condições para controlar adequadamente a dor; que possa ajudar a manter e estimular a autoestima e o autocuidado; que possa prestar os cuidados mais adequados para manter a integridade cutânea e a perfusão tecidular periférica; que possa fazer uma gestão adequada da medicação e prestar cuidados adequados ao doente em estado crítico,…

Os enfermeiros especialistas tem ainda conhecimentos e competências para intervir no controle das IACS’s através da realização de registos, da sua análise, interpretação, mobilizando os resultados para propor mudanças de acordo com as tendências identificadas e a eficácia das medidas adotadas; para tal é preciso que existam condições para o correto registo e transmissão da informação, que visa subsidiar a gestão, a investigação e o processo de prestação de cuidados.

Estes profissionais são competentes para incentivar a implementação das melhores práticas, para a formação dos outros profissionais e estudantes, informar e ensinar a população, e para impulsionar a mudança do status quo relativamente ao problema das IACS’s.

Mas, para que os enfermeiros se sintam valorizados e envolvidos na resolução do problema das “infeções hospitalares” é necessário cultivar uma filosofia institucional virada para uma genuína valorização das pessoas que trabalham, criando mecanismos formais e informais de participação e inclusão de todos na mudança de algumas práticas que são desajustadas em relação às recomendações de boas práticas.

Deverão também ser diagnosticadas, com a colaboração direta dos profissionais no terreno, as necessidades de melhoria nos diversos contextos de cuidados de modo a adequar as práticas à melhor evidência científica.

Há que adaptar as estruturas físicas às necessidades, não permitindo a sobrelotação dos lugares em corredores e cubículos onde permanecem doentes internados durante dias e semanas, com ausência de luz natural ou ventilação adequada, nem a aglomeração de doentes imunodeprimidos.

Terá que se equacionar, nos contextos de prestação de cuidados de saúde, quais serão os melhores mecanismos promotores da adesão às boas práticas atendendo às necessidades de formação, à organização e condições de trabalho, às estruturas e recursos dos serviços, às crenças e atitudes dos implicados no processo de mudança.

É tempo de valorizar a situação individual do doente e garantir a satisfação das suas necessidades, intervindo de forma integral de modo a prevenir a infeção. É tempo de deixar os jogos de poder, os interesses pessoais, as demonstrações de importância e outros tiques para trás. É tempo de deixar que os enfermeiros desempenhem o seu papel na equipa de saúde, especificamente dos especialistas que integram, de forma completa e atualizada na sua área de especialidade, a problemática da infeção associada aos cuidados de saúde.

É tempo de assumir que são necessárias mudanças nas condições de trabalho para que se dê o devido relevo à importância da boa saúde e higiene dos profissionais de saúde. A boa saúde física e mental é sentirem-se em equilíbrio e com energia necessária e suficiente para desempenharem bem as suas funções. É tempo de acautelar os riscos decorrentes da sobrecarga de trabalho, quando não são afetados enfermeiros em número suficiente para uma adequada prestação de cuidados de enfermagem (perante uma higienização das mãos inadequada, conjugada com volume maior de trabalho, maior é o risco de transmissão de infeção porque quanto maior for a duração da prestação de cuidados, maior a contaminação das mãos; quanto maior a pressão para realizar demasiadas tarefas em tempo insuficiente, maior a tendência de não respeitar integralmente as precauções básicas). Não basta uma boa higiene das mãos se não houver mãos suficientes para prestar todos os cuidados de que a pessoa necessita para se defender das infeções. Não basta ter tempo para administrar medicamentos, canalizar acessos, fazer pensos, …, se não se tem disponibilidade para cuidar o doente na sua totalidade.

Os enfermeiros têm que ter níveis de bem-estar elevados para que possam estar disponíveis para o Outro de uma forma terapêutica; não é adequado que o enfermeiro tenha uma sobrecarga de trabalho que lhe cause exaustão, irritabilidade, que o obrigue a despachar trabalho, a “virar frangos”, a “dar banhos” mecanicamente e em linha de montagem, com toda a carga psicológica, frustração e potencial de desumanização e embrutecimento que isso acarreta; com todo o gesto mecânico que se desenvolve, com o abreviar dos cuidados e o arrepiar caminho para despachar trabalho.

Não o fazemos por menos.