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Não é um homem, é um cogumelo!

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“Conheço um Planeta onde há um Senhor (…). Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca gostou de ninguém. Nunca fez nada a não ser somas. E todo o dia repete como tu: «Sou um homem sério! Sou um homem sério!» e isso fá-lo inchar de orgulho. Mas não é um homem, é um cogumelo!”*

Muito se tem pensado, dito e escrito sobre as declarações do Sr. Ministro da Saúde acerca da exaustão de que os enfermeiros se queixam, porque a relacionou de forma direta ao duplo emprego.
Não me senti indignada nem sequer me irritou levemente e só resolvi escrever estas linhas sobre o assunto para dizer que estou absolutamente tranquila.

Talvez esta minha sensação de paz tenha a ver com o facto de que ainda tenho a lucidez suficiente para perceber que se tem vindo a tornar mais habitual, normal, banal até, o cinismo, o descaramento, o desplante nos serviços, nas hierarquias, no sistema como um todo onde pululam autênticas pragas de cogumelos. Os cogumelos dizem que os excessos de trabalho são sazonais e não há razão para tanto alarde; é um tortulho que sente que os profissionais tendem a ser por natureza calaceiros e conflituosos e por isso castigam-se/manipulam-se das mais diversas maneiras ou “deixa-os falar que se hão-de cansar”; são fungos que pensam que as condições de trabalho exigidas estão “acima das nossas possibilidades” e portanto estamos a ser irrealistas; estes cogumelos defendem que a filosofia de trabalho que idealizamos para os cuidados de enfermagem é lirismo e não se aplica ao “trabalho no terreno” e portanto há que saber estabelecer prioridades; é uma praga que olha para as competências acrescidas dos enfermeiros sem grande interesse pois ninguém os obrigou a estudar mais do que o básico, suficiente para as tarefas mínimas que na maior parte das vezes realizam; os cogumelos também não olham com bons olhos os “direitos adquiridos”, pois são um luxo e não um progresso civilizacional… étc.

A grande maioria dos enfermeiros percebe esta farsa toda. Esses que entendem o embuste e não querem enfileirar nas hostes, sabem que o duplo emprego não é uma condição necessária nem suficiente para que se instale a fadiga, a exaustão de uma classe.

O duplo emprego já existe há muitos anos e é uma opção de cada um, pelas mais diversas razões. É lógico que quem trabalha mais, se cansa mais, mas isso não é linear nem existem estudos em Portugal que mostrem diferenças na qualidade dos cuidados prestados e na fadiga sentida por quem trabalha num só local e quem faz duplo. Além disso, o duplo emprego não é apanágio da enfermagem e não vemos outros profissionais, especificamente na área da saúde, reclamar que se sentem exaustos do mesmo modo com os enfermeiros se têm vindo a sentir. Também não estão documentadas as razões da exaustão sentida pelos enfermeiros, nem se os que referem essa exaustão trabalham em duplo emprego, são os mais novos, são mais as mulheres, exercem em condições mais penosas, fazem duplo dentro ou fora da enfermagem, étc.

Penso que seria mais inteligente reconhecer que na origem do problema da exaustão estão outros aspetos, para além dos que têm vindo a ser amplamente discutidos nas redes sociais, e que no meu entender são:

i) A enfermagem ainda é uma profissão predominantemente feminina e as mulheres ainda são, na nossa cultura, as gestoras e trabalhadoras do Lar, quando não acumulam com o papel de pai e de mãe, e quando não são também a única ou maior fonte de rendimento da família; o maior volume de trabalho, o aumento da complexidade das situações de saúde e problemas sociais com que lidam, as condições logísticas e humanas menos favoráveis, a sobrecarga horária de um só emprego, a falta de tempos de pausas suficientes entre turnos num só local de trabalho, o trabalho por turnos, étc., têm impactos nestas pessoas que não devem ser negligenciados, porque à sensação de incapacidade de dar resposta a todas as solicitações no local de trabalho, há a angústia e ansiedade por também não conseguirem desempenhar adequadamente o seu papel no seio familiar;

ii) O horário de 40 horas na enfermagem que presta cuidados diretos ao doente não tem o mesmo impacto que o horário de 40h numa repartição pública ou similar porque não significou “mais uma hora por dia” mantendo o mesmo tempo de folgas; significou mais 2 turnos por mês, retirando as respetivas folgas;

iii) Nos períodos de férias há uma redução de pelo menos 20% das equipas a acrescer à falta crónica de enfermeiros nos serviços para se prestarem cuidados com alguma qualidade e sentido. São os enfermeiros que não estão a gozar férias que asseguram o trabalho deles e o que deveria ser realizado pelos colegas que estão em gozo de férias, pois também não existe um banco de enfermagem para colmatar a ausência dos colegas em férias; ora isto é indecente, não só porque se está a exigir ao enfermeiro que faça duplo trabalho para o qual o único incentivo é a solidariedade pelos que estão de férias e a esperança de que chegue depressa a sua vez, como é imoral porque no limite podemos assumir que o cidadão tem, nos meses de férias dos enfermeiros – veja-se a “latitude” da época alta… – , acesso a menos 20% dos cuidados que receberia num mês “normal”;

iv) Por último, e talvez mais importante do que todos os pontos anteriores, há que rever a cultura instalada nas organizações de saúde e o clima nos serviços, de modo a que se viva em ambientes salutares onde as pessoas se sintam bem. Sem respeito e consideração por quem trabalha, sem valorização genuína do valor e capacidades dos enfermeiros, desconfio que muitos mais se sentirão exaustos, fatigados, arrasados, não porque andam lufa-lufa, corre-corre, mas porque se fartam de ser gozados.

O cansaço, desmotivação e desencantamento de que se queixam os enfermeiros são apenas um sinal de alarme que significa que estão cônscios do potencial perigo de enveredarmos por um sistema de trabalho que não coloca as pessoas em primeiro lugar. É necessário que o sistema assuma publicamente e sem artifícios, quais são os valores que prioriza, e é preciso que quem trabalha concorde com essas prioridades porque sem os enfermeiros não há cuidados de saúde.

*O Principezinho

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