Os Enfermeiros devem, ao longo da seu processo de formação e do exercício da sua carreira profissional, adquirir estratégias que lhe permitam não só para proporcionar apoio psicológico ao utente e aos seus significativos, como também encarar a morte como parte integrante da vida.
Resumo
Numa época em que são desenvolvidos esforços para que a vida seja vivida em toda a sua plenitude e em que se tenta adiar o momento da morte o mais possível, assistindo-se, consequentemente, a um aumento da esperança média de vida e desenvolvimento exponencial da medicina, nos países industrializados, verificamos que a morte é, cada vez mais, um tabu e ocorre, na maioria das vezes em contexto hospitalar em detrimento do contexto domiciliário.
Deste modo, cabe a todos nós, Profissionais de Saúde, tentar inverter esta tendência, encarando a morte como parte integrante da vida e desenvolvendo capacidades para tentar conhecer toda a complexidade do ser humano – um ser que está inserido numa sociedade, numa família, com um papel bem definido e único em cada um destes grupos – e para promover uma morte digna.
Mais do que o cessar irreversível dos processos vitais, a morte tem uma dimensão individual – “quem vai morrer sabe-o, espera pela morte e prepara-se para ela” (Neves e tal, 2000) – familiar e cultural.
Assim, segundo Daniel Serrão, “morrer é um processo e não um acontecimento pontual que se observa nos objectos vivos quando se transformam em objectos não vivos. Esta transformação resulta de perdas irreversíveis, totais ou parciais, em algum – finalmente em todos – dos componentes do estado vital que são a matéria, a energia e a informação” (in Cruz, 2004).
Adjacentes a este mesmo processo de morte, e encarando a família como um sistema, estão processos adaptativos, muitas vezes bastante dolorosos e duradouros, que implicam a reorganização e aquisição de novas competências e estilos de vida com o intuito de recuperar o equilíbrio familiar.
De acordo com Francisco Veiga (Veiga, 2003), a percepção do momento da morte desencadeia, na maioria das vezes, uma alteração da personalidade e um desequilíbrio na identidade do utente.
Deste modo, embora o Enfermeiro deva estar consciente que é o utente e a sua família que possuem recursos para ultrapassar este momento, este tem um papel preponderante na ajuda para a superação do mesmo.
O morrer, qualquer que seja a qualidade dos cuidados, permanece um acto solitário, um caminho difícil que guarda os seus mistérios” (Neves, 2000)
Assim, em primeira instância, este deve procurar, aliviar a dor, física e psicológica, e o desconforto, promovendo um ambiente que permita alguma tranquilidade ao utente moribundo.
Contudo, o Enfermeiro deve ter em consideração que não só deve atender às necessidades do utente que vai morrer mas, como também às necessidades da família e pessoas significativas, estabelecendo com os mesmos uma relação de ajuda extremamente necessária para a superação deste momento.
Actualmente, verificamos que a maioria dos utentes, ao contrário do que acontecia no passado, morre num contexto hospitalar e não em casa, estando, na maioria das vezes, privado da companhia dos membros da família e das pessoas que lhe são significativas, condenado a uma morte só e quase em segredo, ocultada apenas com um biombo ou uma cortina.
Deste modo, pelo facto de cada vez mais pessoas morrerem em instituições de saúde e dos seus familiares e significativos vivenciarem as etapas de luto (negação, raiva, negociação, depressão e aceitação), surge um dos maiores desafios da Enfermagem Contemporânea: potenciar uma morte digna no seio familiar.
Assim, é importante, antes de mais, incutir nas famílias, nos casos em que a morte é esperada, que nenhuma instituição de saúde, quer seja pública ou privada, substitui o ambiente familiar, a casa do utente moribundo e, sempre em colaboração com a família, deve tentar proporcionar-se-lhe uma morte no domicílio, ou no local que em princípio lhe trará maior tranquilidade, paz de espírito, segurança e carinho dos seus derradeiros momentos de vida terrena.
“Acontece até que, através do apoio prestado pela presença de uma pessoa que possibilite a exteriorização do desespero e do sofrimento, os doentes agarram a vida, apropriam-se dela e libertam a verdade. No fundo, descobrem a verdade de serem eles próprios.” (Hennezel, 2006)
Segundo Marie de Hennezel, Psicóloga da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital Universitário de Paris, o acompanhamento do utente moribundo “permite ir até ao fim de uma relação. Por um lado, dá paz e dá força para continuar e, por outro, permite àquele que vai morrer permanecer vivo até ao fim, viver os seus últimos impulsos e confiar aos ouvidos e ao coração dos que o rodeiam palavras que o ajudarão a viver e que lhes permitirão partir em paz. O acompanhamento é um compromisso de não abandono” (Hennezel, 2006).
Sejam quais forem as nossas crenças, a morte permanece um enigma que nos persegue, uma realidade que desconhecemos.” (Hennezel, 2006)
Contudo, algumas das vezes, a morte chega de uma forma surpreendentemente rápida e imprevisível. Nestes casos, o Enfermeiro deve assegurar-se que o utente esteja na companhia dos seus significativos o maior número de horas possível.
Para isso, cabe-lhe contactar os familiares quando se verifica o afundamento do estado do utente e permitir que estes estejam presentes o mais rápido possível.
O amor, a atenção, o carinho e a presença de uma pessoa significativa, ajudam o utente moribundo a partir de uma forma mais serena, permitindo-lhe minimizar os seus próprios medos avassaladores acerca deste momento (e.g. “Vai demorar muito? Vai doer? Para onde vou a seguir? Como será quando a minha alma se separar do meu corpo?”), pois encontra-se num ambiente conhecido e na companhia das pessoas que mais ama.
Os Profissionais de Saúde são formados “para curar”, durante o seu processo de ensino. Por isso, perante a morte, sentem-se extremamente impotentes pois este é um processo que não conseguem reverter. Quando esta ocorre, encaram-na, muitas vezes, como uma derrota, uma falha pessoal, assumindo, em alguns dos casos, uma postura de culpabilização.
Contudo, enquanto pessoas, estes Profissionais de Saúde também se deparam com a necessidade de enfrentar, de ultrapassar lutos pessoais recentes e de vencer os medos da sua própria morte podendo, por isso, evidenciar dificuldades relacionais e comunicacionais com a família e o utente moribundo.
Assim, perante a morte iminente de um utente, verificamos que os Profissionais de Saúde, especialmente os Enfermeiros, adoptam, muitas vezes, duas posições ambíguas: ou se envolvem demasiado, estando sujeitos a vivenciar a morte do utente como a de um seu significativo, passando pelas fases de luto atrás referidas; ou, simplesmente, se afastam, na tentativa de se defenderem, conduzindo a uma desumanização dos cuidados prestados e comprometendo, irremediavelmente, o estabelecimento de uma relação de ajuda com a família.
Os Enfermeiros devem, ao longo da seu processo de formação e do exercício da sua carreira profissional, adquirir estratégias que lhe permitam não só para proporcionar apoio psicológico ao utente e aos seus significativos, como também encarar a morte como parte integrante da vida.
“Cada um de nós pode aproximar-se da morte, olhando-a de frente, se não negarmos a morte, se os que estão à nossa volta a aceitam, se há suficiente verdade e amor em redor daquele que vai morrer.” (Hennezel, 2006)
A Enfermagem Tecnicista deverá ser, a cada dia, substituída por uma Enfermagem Humanista em que no cerne dos cuidados deverá estar o indivíduo, encarado de uma forma holística nas suas mais variadas dimensões (biológico, psicológica, cultural e social).
A administração de terapêutica, a monitorização dos sinais vitais, a sinalização do óbito e a respectiva burocracia podem esperar. Temos de aprender a “não fechar simplesmente a cortina e virar as costas” quando um utente está a morrer, temos de superar os nossos medos e receios e permanecer junto dele, sobretudo se a família não estiver presente. Só assim poderemos evoluir enquanto pessoas e enquanto profissionais.
“Aceitar a morte não é negar a vida, é reassumir a coragem e parar de lutar; é querer o silêncio, mas não a solidão; é desejar a paz e a dignidade.” (Veiga, 2003)
Outro dos aspectos a ter sempre em consideração, é o direito do utente a uma morte digna: a dignidade é um dos direitos fundamentais do ser humano, acompanhando-o ao longo de todo o seu ciclo vital ou seja, do nascimento até à morte.
Deste modo, é fundamental ter em atenção a forma como o cadáver é preparado e manipulado, nunca esquecendo que aquele corpo, agora inerte, pertenceu a uma pessoa que estava integrada numa família e numa sociedade.
Os Enfermeiros, principais responsáveis pela preparação do cadáver, devem ter sempre presente que aquele corpo irá ser visto, chorado pela família e pessoas significativas. Por conseguinte, é extremamente necessário que este tenha o melhor aspecto possível.
Os valores culturais e religiosos do utente devem, ainda, ser tidos em conta; deste modo, deverá ser permitido, sempre que possível, que seja contactado o representante religioso do utente, qualquer que seja a religião, ainda antes deste morrer: “todo o utente tem o direito ao atendimento das suas necessidades espirituais, pois é nelas que, muitas vezes, o utente encontra o sentido à vida” (Moreira, 2001).
Penso que só a experiência profissional, ajudará os Enfermeiros a adquirir uma visão mais humana da morte pois, tal como foi dito anteriormente, associado ao processo de formação de todos nós está a preservação da vida, a salvação de vidas, a intervenção para que aquele utente não entre em paragem cárdio-respiratória, em falência multiorgânica.
Só o tempo e a experiência profissional nos farão compreender a importância de permanecer junto do utente que está a morrer, a necessidade de um aperto de mão ou um simples afago, num momento tão importante para quem vai em direcção a um local que nenhum homem conhece mas de que todos tem receio…
Referências Bibliográficas:
- ARIÉS, Philipe – O Homem perante a morte I e II. Nem Martins: Publicações Europa América, 1998;
- CRUZ, Jorge – Morte Cerebral, do conceito à Ética. Lisboa: Climepsi Editores, 2004;
- HENNEZEL, Marie de – A arte de Morrer. 2º Edição. Cruz Quebrada: Casa das Letras / Editorial Notícias, 2005;
- HENNEZEL, Marie de – Diálogo com a Morte. 6ª Edição. Cruz Quebrada: Casa das Letras / Editorial Notícias, 2004;
- HENNEZEL, Marie de – Morrer de Olhos abertos. 1ª Edição. Cruz Quebrada: Casa das Letras / Editorial Notícias, 2006;
- LAZURE, Hélène – Viver a Relação de Ajuda – abordagem teórica e prática de um critério de competência da Enfermeira. Lusodidacta, 1994;
- MOREIRA, Isabel Maria Pinheiro Borges – O utente terminal em contexto familiar: uma analise do cuidar vivenciada pela família. Coimbra: Formasau, 2001; Dissertação do Mestrado em Ciências da Enfermagem apresentada no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar;
- MORIN, Edgar – O Homem e a Morte. 2ª Edição. Lisboa: Publicações Europa-América, 1970;
- NEVES, Ana et al – Cuidados Paliativos. 1ª Edição. Coimbra: Edições Formasau, Formação e Saúde, 2000;
- VAZ, Ana e tal – O impacto na família e o papel do Enfermeiro. In: Nursing, nº176 (Abril 2003), página 23-26;
- VEIGA, Francisco José Miranda – Viver a morte – Desafios Éticos do final da vida. Porto, 2003. Dissertação do Mestrado em Bioética e Ética Médica.
Enf. Diana Luísa Martins Oliveira