Início Nursing Memória, Autonomia e Dignidade

Memória, Autonomia e Dignidade

266
0
Revista Nursing

A demência é um problema conhecido desde a antiguidade, sendo, no entanto, e ainda hoje, catalogada como loucura

Título

Memória, Autonomia e Dignidade

Memory, Autonomy and Dignity

Nursing nº275

Autor

Ana Catarina Sanches Infante

Enfermeira no Hospital de Santa Maria de Lisboa, Unidade de Queimados

Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Cuidados Paliativos da Universidade de Medicina de Lisboa, no módulo de Bioética

Resumo

A demência é um problema conhecido desde a antiguidade, sendo, no entanto, e ainda hoje, catalogada como loucura.

Após dois séculos da descoberta da doença de Alzheimer, a dignidade dos doentes deve suscitar aos profissionais de saúde grande preocupação. “Não há nada a fazer”, quando o diagnóstico é decretado, deve ser uma frase a abolir no âmbito dos profissionais de saúde.

Através deste artigo pretendo reflectir sobre o que é possível fazer para manter a autonomia dos doentes, melhorando a sua qualidade de vida e a dos seus familiares.

Palavras-Chave: Demência; Memória; Autonomia; Dignidade.

Abstract

Dementia is a known issue since antiquity, but still, even today, classed as madness.

After two centuries of Alzheimer’s disease discovery, the dignity of patients should raise health professionals great concern. “There is nothing to do”, when the diagnosis is decreed, must be a sentence to abolish within the health professionals.

Through this article I want to reflect on what we can do to maintain the autonomy of patients, improving their quality of life and of their families.

Keywords: Dementia; Memory; Autonomy; Dignity.

Introdução

Nunca me tinha defrontado e reflectido sobre a importância da memória até me terem sugerido a leitura de um livro que retrata a singularidade da mesma: “Ainda Alice”, de Lisa Génova, que descreve a doença de Alzheimer:

“(…) – Mamã, queres ouvir-me dizer o monólogo em que estou a trabalhar, para as aulas, e dizer-me sobre o que pensas que é?(…) Quando eu acabar, diz-me como te fez sentir, está bem?

Alice observou e ouviu e concentrou-se para além das palavras que a actriz dizia. Viu os seus olhos ficarem desesperados, inquiridores, (…). Viu-os pousar suavemente nela, com gratidão. Ao princípio a sua voz soara hesitante e assustada. Lentamente, (…), foi ficando mais confiante e depois alegre, parecendo às vezes uma canção. As suas sobrancelhas e ombros e mãos suavizaram-se e abriram-se, pedindo aceitação e oferecendo perdão. A sua voz e o seu corpo criaram uma energia que preencheu Alice e a comoveu até às lágrimas. (…) A actriz parou e voltou a ser ela própria. Olhou para Alice e esperou. – Muito bem, o que sentiste?

– Sinto amor. É sobre o amor.

A actriz soltou um gritinho, correu para Alice, beijou-a na face e sorriu, com expressão deliciada.

– Acertei? – perguntou Alice.

– Acertas-te, mamã. Acertas-te em cheio.”

Génova L. (2009)

As demências constituem um problema de saúde cada vez mais consciente. São incuráveis e progressivamente destroem a nossa autonomia, dignidade e as nossas lembranças.

Doença de Alzheimer

A demência caracteriza-se por um conjunto de sintomas sendo o principal, e sobretudo na doença de Alzheimer, as perturbações da memória1.

Uma contingência na viagem da vida pode mudar a nossa capacidade de tudo lembrar pondo em causa todas as nossas construções físicas e emocionais. Mais do que a importância da nossa individualidade e do nosso crescimento pessoal, as pessoas que amamos, ou mesmo as pessoas que não estabelecemos quaisquer laços afectivos, são-nos indispensáveis a uma sobrevivência digna e finita.

A memória, analisada de forma antagonista, é como um adversário à felicidade do presente. Vivemos numa sociedade “velha”, onde as doenças predominam ao culto da insaciável saúde e elixir da juventude. Os doentes, de acordo com os estádios da doença, questionam-se sobre o impiedoso passado, não deixando este ser manipulado pelas intermináveis súplicas do arrependido. O transcorrido é fonte de sofrimento presente e impedimento da felicidade do futuro. A famosa expressão “vive o momento”, porque o tempo passado e futuro não subsistem para além do AGORA, é adversária da memória. Como Didion escreve: “A melhor maneira de nos mal tratarmos é voltando atrás”2.

Se já as doenças do âmbito físico comportam o afastamento da família e amigos, embebidos numa sociedade instrumentalizada, as patologias demenciais sofrem fortalecidas da marginalização histórica, sendo sinónimas de loucura e estupidez.

Tendo em consideração que a população envelhece velozmente, a prevalência destas doenças aumenta exponencialmente, constituindo uma pesada factura para a sociedade (figura 1)1. Estimam-se para os próximos anos cerca de 70.000 casos de pacientes em Portugal3.

Quadro (em anexo)

Fig. 1- Evolução do número de óbitos por doença de Alzheimer

Fonte: Instituto Nacional de Estatística, Estatísticas da Saúde, edições de 2003-2006 (Citado e adaptado de Mendes J. Doença de Alzheimer e outras demências. In: Mendes J. Editor. Lidar com a doença de Alzheimer. 1ª Edição. Lisboa. DECO Proteste; 2009:15-24.)

É importante referir que os números acima apresentados não reflectem verdadeiramente a seriedade desta progressão. Muitos são os doentes falecidos por Alzheimer e não diagnosticados e, de igual forma, muitos são os idosos, sobretudo nos meios rurais, que não consideram fundamental ir ao médico quando os sintomas da doença se expressam por associarem à idade1.

Sendo a perda gradual da autonomia o sustentáculo destas doenças, a manutenção da sua dignidade é a medula que converge para todos os outros sentidos de uma vida esquecida, evidenciando-se a necessidade de assumir atitudes responsáveis que impeçam o risco de desumanização e a anulação da capacidade ética da humanidade na deferência dos valores que se enraízam na pessoa humana4.

Dilemas Éticos

O que é uma pessoa sem memória? Vivenciará uma “morte branca” 5?

A pessoa é o conjunto de diferentes componentes, entre as quais a física, emocional, cognitiva e relacional. É uma associação moral, que procura respeitar um conjunto de normas, princípios, costumes e valores que norteiam o seu comportamento no grupo social. É uma corporação ética que procura soluções para os seus dilemas mais comuns, desejando explicar e justificar os costumes da sociedade4. É um organismo que se interroga sobre a sua existência, sendo, como Boécio refere, uma “substância individual de natureza racional” 6. De acordo com a visão contemporânea, é impossível separar a identidade pessoal e moral do conceito de autonomia7. A ética de Engelhardt refere que os fetos, as crianças, os pacientes atingidos pela demência não são pessoas pois não têm um papel na comunidade moral. Desta forma, os humanos não pessoas dependem da beneficência das pessoas4.

Sem memória, a intenção socialmente imposta de se proceder e pensar em determinado sentido, é dizimada. A pessoa deixa de o ser para se “transferir para outro”. A “desmemória” não só o isola da realidade objectiva como o destitui de sentimentos, “tornando-se frio, terrivelmente frio”. “(…) Como um animal a planar dentro duma redoma de vidro (…) e onde as palavras chegam cegas” 5.

O cuidar do outro é, assim, neste flagelo humano, substituído pelos cuidados prestados pelo outro. A idade adulta regride invariavelmente à sua origem e a tendência é o retirar de capacidades e competências para decidir sobre a sua vida. O doente deixa de ser pessoa para ser vítima da doença que não mais divide a sua vida no mundo. Os cuidadores tornam-se donos da mente e corpo do doente, assumindo funções de julgamento, auto-controlo, e logo de poder. A pessoa doente, diminuta de responsabilidades, deixa de ser um ser social, profissional e familiar, sem sentimentos éticos e morais. Desta forma, de acordo com Engelhardt, deixa de ter o direito ao respeito, amor e recursos fundamentais, que a ética e moral humanas comparticipam. Este tipo de atitude conduz à insensibilidade e contradiz a moralidade humana. No entanto, o facto do ser humano fruir de algo que o distingue não justifica a sua exclusão. Quem é dono de menor moralidade: aquele que por doença não a tem ou aquele que, por característica intrínseca à pessoa, é dono dela mas não a opera? A verdadeira riqueza não reside na soma dos valores quantificáveis mas nos valores de benevolência e generosidade4.

Questionamo-nos assim, se a pessoa por perder as qualidades que a definem deixa de ser decretada como tal? Os doentes de Alzheimer são ou não pessoas? Independentemente do conceito de pessoa poder não abranger estes doentes o conceito de vida humana é-lhes inato. De acordo com a lei portuguesa, é reconhecida personalidade jurídica a todos os indivíduos da espécie humana a partir do seu nascimento. Isto confere-lhes vários direitos incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa: direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade e segurança, à saúde, à habitação, entre outros8. Desta forma, apesar do doente ir perdendo a sua autonomia, todos os seus direitos devem ser respeitados. A sociedade é ética e moralmente responsável por este.

Feinberg (1986), refere-se à autonomia como o direito à autodeterminação, independência na tomada de decisões sobre o seu corpo, família e propriedade9. Neste âmbito, autonomia significa a capacidade para se governar a si mesmo, para definir o trajecto da própria acção. A beneficência pressupõe fazer o bem aos outros, é uma obrigação moral de agir em benefício do outro e pode ser mesclada com paternalismo10,11. Evidencia-se assim um choque entre estes princípios aquando do indeclinável curso da doença. A autonomia do doente vai sendo progressivamente anulada para ficar imperiosamente cedida aos outros (Figura 2)4. O doente perde competências, não só na capacidade para executar tarefas mas também de tomar decisões sobre a sua própria vida. Esta determinação de aptidões é fundamental para proteger os pacientes contra decisões que possam tomar e que não sejam no seu melhor interesse6. A partir de determinada altura, é favorável avançar-se com um pedido de inabilitação em tribunal, de modo a facilitar a anulação dos actos praticados por quem perdeu as suas capacidades, por exemplo a celebração de contratos danosos.

Figura

Autonomia Beneficência

Fig. 2- Diminuição da autonomia do doente com progressivo aumento da dependência dos outros

Apesar das perdas progressivas da doença, o equilíbrio entre a autonomia do doente e a beneficência deve ser mantido. Independentemente da incapacidade associada à doença, quem sofre de demência e quem o representa têm o direito a serem devidamente informados sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamentos. O doente tem que ter conhecimento de todas estas informações para poder tomar uma decisão consciente e após o seu diagnóstico, deve ser sempre acompanhado de um familiar/amigo nas suas consultas, passando este a ser o seu representante legal8. No início da doença, o doente de Alzheimer pode decidir sobre a sua vida, desejos, interesses, tratamentos e cuidados a adoptar, pretendendo que as mesmas imperem quando não estiver em condições de as manifestar. O testamento em vida pode ser delineado pelo doente4.

Devemos, como sociedade, preocupar-nos pelo outro e agindo em benefício do mesmo sem colocar para segundo plano a sua autonomia. Antes pelo contrário esta deve ser incentivada e desenvolvida. Os objectivos do tratamento devem visar, sempre que possível, a independência do doente, mantendo o seu estilo de vida tanto tempo quanto possível (quadro 1). As perdas são muitas, adicionadas à institucionalização, que na maioria das vezes ocorre, acrescidas, facilmente, à desumanização. A família deve ser assim o cerne dos cuidados à pessoa demente, sendo uma exigência ética que a sociedade desenvolva estratégias de suporte4.

Quadro 1- Problemas e soluções na doença de Alzheimer

Conclusão

Verifica-se que na doença de Alzheimer a perda de memória é progressiva e o doente assiste à sua perda gradual, bem como, o degradar das suas funções quotidianas, determinando completa vacuidade de autonomia e invalidando a qualidade de vida familiar. No entanto, ao paciente nunca deve ser negada a possibilidade de se manifestar relativamente ao seu tratamento, com base na ideia preconcebida de que está demente e logo não tem capacidades de decisão. É predominante a elegante linha entre a beneficência e a autonomia dos doentes não dementes. Com os pacientes de Alzheimer esta linha corre o risco de deixar de existir para deixar prevalecer o instintivamente humano: poder sobre o outro de acordo com as convicções pessoais. É importante assegurar o respeito pelo ser humano. Este pode ter “perdido a capacidade de reconhecimento das pessoas próximas mas não a necessidade de estímulos emocionais e físicos” 4.

Bibliografia

1- Mendes J. Doença de Alzheimer e outras demências. In: Mendes J. Editor. Lidar com a doença de Alzheimer. 1ª Edição. Lisboa. DECO Proteste; 2009:15-24.

2- Didion J. O ano do pensamento mágico. Lisboa. Gótica; 2006.

3- Associação Portuguesa de familiares e amigos de doentes de Alzheimer (APFADA). Acesso em Novembro de 2009: http://www.apifarma.pt/uploads/14-APFADA.pdf

4- Freitas M. A doença de Alzheimer e a dignidade humana – Questões éticas. Tese de Mestrado em Bioética. Universidade de Medicina de Lisboa; 2006.

5- Pires J. <I>De Profundis<I>,valsa lenta. Portugal. Dom Quixote; 2009.

6- Antunes A. Consentimento informado. In: Serrão D, Nunes R. Editores. Ética em cuidados de saúde. Portugal. Porto Editora; 1998: 11-27.

7- Reich W. Encyclopedia of Bioethics (Vols.1-4). New York. 1995; 4:1934-1040.

8- Mendes J. Direitos e incapacidades. In: Mendes J. Editor. Lidar com a doença de Alzheimer. 1ª Edição. Lisboa. DECO Proteste; 2009:189-195.

9- Reich W. Encyclopedia of Bioethics (Vols. 1-4). New York. 1995; 1:221-228.

10- Reich W. Encyclopedia of Bioethics (Vols. 1-4). New York. 1995; 1:243- 247.

11- Beauchamp T, Childress J. Beneficence. In: Beauchamp T, Childress J. Editores. Principles of Biomedical Ethics. New York. Oxford University Press; 1994: 259-325.