O desenvolvimento científico no âmbito das ciências médicas verificado nos últimos anos contribuiu de forma significativa para o conhecimento da fisiologia da cicatrização. Aliado a esse conhecimento, e ao desenvolvimento tecnológico, começaram a surgir na década de 80 materiais de penso de especificidade crescente.
Ana Paula Dinis
Farmacêutica
Especialista em Farmácia Hospitalar
Técnica Superior de Saúde – Centro Hospitalar de Coimbra
Hospital Geral
Caracterização e Sistematização do Material de Penso (continuação)
Material Desbridante
Como o próprio nome indica, este material de penso caracteriza-se primariamente pela sua capacidade de promover o desbridamento de tecidos necróticos responsáveis pelo atraso do processo de cicatrização. Dentro deste grupo podem incluir-se:
- Desbridantes autolíticos
- Desbridantes enzimáticos
Desbridantes autolíticos
São compostos essencialmente à base de água (cerca de 80%), a qual é responsável pela hidratação dos tecidos secos, favorecendo assim, a sua dissolução e consequentemente a autólise pelo próprio organismo.Dessa forma, estão indicados em primeira linha em feridas secas com ou sem necrose, ou pouco exsudativas.
O facto de fornecerem humidade à ferida, contribui para a promoção da angiogenese e re-epitelização, sendo ainda responsáveis pela diminuição da dor por humedecimento das terminações nervosas.
Esse material existe comercializado sob duas formas de apresentação – gel amorfo e apósito (ver Figura 1).
Figura 1 – Hidrogel sob a forma de apósito.
O gel deve ser aplicado sobre a ferida com um mínimo de 5 mm de espessura (ver Figura 2) e posteriormente coberto com um apósito secundário – gaze, película semi-permeável ou poliuretano (se existir algum exsuaddo).
Em relação à apresentação sob a forma de apósitos, estes podem ter rebordo ou não, sendo que neste caso, requerem um penso secundário. Ambas podem permanecer na ferida até um máximo de 3 dias, dependendo das suas características (presença de exsudado, infecção, etc.)
Figura 2 – Aplicação do hidrogel amorfo.
Actualmente, estão disponíveis geles compostos por alginatos, pectinas, carboximetilcelulose entre outros compostos, que para além de fornecerem água aos tecidos, fazem a gestão dos exsudados, diminuindo dessa forma a maceração dos tecidos e da pele perilesional.
Desbridantes autoliticos comercializados:
Geles amorfos – Askina® Gel (B.Braun); Intrasite® gel (Smith & Nephew); Nu-gel® (Jonhson & Jonhson); Varihesive® Gel (Convatec).
Apósitos – Intrasite® conformable (Smith & Nephew); Hydrasorb® (Hartmann); Suprasorb® G (Novamed).
Desbridantes enzimáticos
São assim denominados, devido ao facto de serem compostos por enzimas proteolíticas responsáveis pela quebra das pontes de colagénio que prendem o tecido necrosado à base da ferida (ver Figura 3). Os péptidos resultantes da degradação do colagénio, têm um efeito quimiotatico sobre os macrofagos e fibroblastos, atraindo-os para a base da ferida com a consequente estimulação do processo de granulação.
A colagenase é a única enzima comercializada em Portugal e está disponível sobre a forma de pomada, estando indicada no desbridamento enzimático dos tecidos necrosados ou fibrinosos, sendo que a sua eficácia depende da penetração na crosta. É pois por isso recomendada, a realização de alguns cortes na mesma para facilitar a penetração da pomada através dos tecidos necrosados secos.
Figura 3 – Quebra das fibras de colagénio pelas enzimas (representadas a vermelho e verde) que prendem o tecido necrótico à ferida.
Previamente à da aplicação da pomada, a ferida deve ser devidamente limpa, tendo o cuidado de não utilizar soluções ou pomadas que contenham metais pesados (ex. iodo, prata, zinco) uma vez que podem destruir a enzima, e posteriormente coberta com um penso adequado, o qual deve ser refeito pelo menos uma vez por dia.
Desbridante enzimático comercializado: Ulcerase® (Smith & Nephew)
Material Impregnado
De uma forma simplista, pode definir-se material impregnado como todo aquele que é composto por uma gaze impregnada por uma substância dotada ou não de efeito terapêutico.
Assim, e uma vez que neste grupo podemos incluir uma variedade enorme de pensos disponíveis, é importante subdividi-los em dois grupos: as gazes impregnadas com substâncias sem efeito terapêutico e as dotadas de efeito terapêutico.
Material de Penso Impregnado com Gorduras
Dentro do primeiro grupo incluem-se as gazes gordas, que podem ser compostas por uma compressa primária natural, à base de algodão hidrófilo,ou sintética de celulose ou viscose, impregnada por uma substância gordurosa – vaselina, parafina ou lanolina – cujo efeito é proteger a aderência da compressa ao leito da ferida, evitando desse modo a destruição dos tecidos neoformados aquando da substituição do penso (ver Figura 4).
Estão por isso indicadas em feridas na fase de granulação, secas ou com baixa quantidade de exsudado, como sejam as queimaduras de 1.º ou 2.º graus, abrasões, enxertos, úlceras, entre outras.
Figura 4 – Compressa impregnada de substâncias gordurosas.
As várias marcas existentes no mercado diferem quanto ao tipo de compressa (natural ou sintética), tamanho da malha (mais aberta ou fechada) e ainda à substância gordurosa.
Convém ainda salientar que as de algodão deixam mais tecido aderente à ferida e absorvem menos exsudado do que as sintéticas.
Estas compressas são aplicadas directamente sobre a feria previamente limpa podendo permanecer durante 1 a 3 dias.
Em caso de necessidade podem ser cortadas à medida, de forma a ajustarem-se ao tamanho da ferida.
Material de Penso Impregnado com Gordura comercializado:
Adaptic® (Johnson & Johnson); Atrauman® (Hartmann); Grassolind® (Hartmann); Jelonet® (Smith & Nephew); Lomatuell® (Novamed).
Material de Penso Impregnado com Iodo
O iodo bem como os seus derivados (ex. iodopovidona), apresenta um elevado espectro de actividade contra bactérias gram positivas, gram negativas, fungos, vírus, esporos e protozoários, tornando-o bastante útil no tratamento e profilaxia de infecções, nomeadamente de lesões cutâneas.
Encontram-se comercializadas dois tipos de material de penso com iodo – compressa impregnada com iodopovidona a 10% e gaze impregnada com cadexómero de iodo. Ambas permitem uma libertação controlada do iodo, contribuindo por esse facto, para um aumento da sua eficiência.
No que concerne à compressa impregnada com iodopovidona, esta consiste numa viscose impregnada com polietillenoglicol (PEG) contendo 10% de iodopovidona equivalente a 1% de iodo activo. Quando em contacto com o exsudado da ferida, a iodopovidona é libertado da base de PEG para o leito da ferida. Em relação ao cadexómero de iodo, esta consiste numa matriz polissacarídea (amido) biodegradavel na qual está inserido o iodo. Em contacto com o exsudado da ferida, a pasta de amido absorve-o e liberta o iodo para a ferida formando um gel.
Este material de penso está no entanto contra-indicado no caso de hipersensibilidade ao iodo ou à iodopovidona, em doentes com tiróidite de Hashimoto, doença de Grave nodular não tóxica, em mulheres grávidas ou em período de aleitação, devendo ainda ser usado com precaução em doentes com história de doença da tiróide ou com alterações graves da função renal.
Previamente à aplicação de qualquer um desses materiais, a ferida deve ser limpa e a selecção de um ou outro deve ser fundamentalmente efectuada em função da quantidade de exsudado – se baixo deve ser usada a gaze impregnada com idodopovidona, se abundante o cadexómero de iodo.
Ambos requerem um penso secundário e podem permanecer na ferida até um máximo de 3 a 4 dias, dependendo da presença de infecção e do grau de exsudado.
Material de Penso Impregnado com iodo ou derivados comercializado:
Inadine® (Johnson & Johnson); Iodosorb® (Smith & Nephew).
Material de Penso Impregnado com Clorohexidina 0,5%
A clorohexidina é um anti-séptico com espectro de acção inferior ao iodo, tendo apenas actividade sobre bactérias gram positivas e gram negativas.
O seu uso está portanto indicado na profilaxia e tratamento de feridas infectadas.
A gaze impregnada com clorohexidina deve ser aplicada directamente sobre a ferida previamente limpa requerendo um penso secundário que a fixe. A frequência de mudança está sempre dependente das características da ferida. No entanto se esta estiver infectada, deverá ser diária.
Na figura 5 pode-se ver um exemplo desse tipo de compressa.
Figura 5 – Aplicação de uma compressa de clorohexidina a 0,5%.
Material de Penso Impregnado com clorohexidina comercializado:
Bactigras® (Smith & Nephew).
Material de Penso Impregnado com Prata
A prata é um potente agente antimicrobiano, que actua por ligação aos grupos sulfidrílicos, carboxílicos, fosfatados, aminados, levando à alteração físico-química das proteínas e eventualmente à sua precipitação causando assim alterações estruturais na parede e membranas bacterianas.
Devido à sua acção bactericida, a prata tem sido usada desde tempos remotos no tratamento de várias doenças incluindo a epilepsia, infecções venéreas, acne, úlceras de perna, etc. Foi utilizada primariamente sob a forma de nitrato de prata e mais tarde, em 1960 como sulfadiazina de prata de grande utilidade no tratamento de queimaduras infectadas, sendo que o seu uso ainda se mantém na actualidade.
A sua eficácia contra Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureus, Candida albicans entre outros microrganismos, associada ao baixo teor de resistências, suscitou o interesse da indústria farmacêutica para o fabrico de vários materiais de penso. Assim, existem hoje disponíveis vários materiais (ver Quadro 1) com capacidade de gestão de exsudado, mantendo um ambiente húmido na interface ferida/penso e que simultaneamente combatem ou previnem a infecção. Convém no entanto salientar que, a infecção de uma ferida ou dos tecidos subjacentes deve ser devidamente comprovada e o seu tratamento requer muitas vezes antibioterapia sistémica, constituindo nesses casos o material de penso com prata um adjuvante.
Quadro 1. Material de penso actualmente comercializado em Portugal contendo prata.
Material de Penso | Nome Comercial | Composição |
Alginato com prata | Calgitrol® Ag | Alginato com prata iónica com uma camada de espuma. |
Hidroalginato com prata | Silvercel® | Alginato e fibras de carboximetilcelulose com prata iónica. |
Carvão activado com prata | Actisorb® Silver 220 | Carvão activado com prata |
Compressa com prata | Atrauman® Ag | Compressa não aderente com prata iónica. |
Hidrofibras com prata | Aquacel® Ag | Carboximetilcelulose com prata metálica. |
Prata nanocristalina | Acticoat® | Polietileno com nanopartículas de prata reactivas. |
Como se pode verificar no Quadro 1, são diversas as apresentações com prata, as quais aliam as propriedades dos vários materiais já anteriormente referidos.
A sua selecção deve ser feita em função do estádio ou da quantidade de exsudado da ferida.
Na sua grande maioria, a prata está disponível na forma iónica (a mais activa), sendo cedida de forma controlada para o leito da ferida. O penso de carvão activado com prata (Actisorb® Silver 220) constitui uma excepção, uma vez que, quando aplicado na ferida adsorve toxinas, produtos de degradação da ferida, compostos voláteis e as bactérias que são posteriormente inactivadas no próprio penso, como se pode verificar na figura 6.
Figura 6 – Fibras de carvão activado com as bactérias adsorvidas.
Particular chamada de atenção para o penso com prata nanocristalina, no qual a prata é reduzida a partículas muito pequenas (ver figura 7) o que vai permitir um aumento da superfície de contacto e assim uma maior actividade.
Figura 7 – Nanoparticulas de prata.
Embora a maior parte desses pensos mantenham uma actividade microbiana durante vários dias, a frequência de mudança depende das características da ferida e da quantidade de exsudado, sendo que, de um modo geral as feridas infectadas devem ser analisadas diariamente.
Para uma utilização correcta de cada um desses materiais, é recomendado o conhecimento das características de cada um, que podem ser facultadas pelo Laboratório.
Promotores da cicatrização
Os promotores da cicatrização devem ser utilizados apenas quando a ferida se apresenta estagnada, ou seja, sem evolução, permitindo estimular a angiogénese ou a granulação. Normalmente mimetisam produtos endógenos que por motivos vários não exercem a sua actividade convenientemente (casos do ácido hialurónico ou do colagénio).
Ester do ácido hialurónico
O ácido hialorónico é de um hidrato de carbono que existe na matriz extracelular da pele, joelhos, olhos – entre outros órgãos e tecidos – e está implicado na migração e proliferação celular, nomeadamente na formação e orientação do tecido de granulação, na modelação da resposta inflamatória e na estimulação da angiogenese.
Assim, a sua utilização tem por objectivo ajudar a reproduzir o ambiente natural da cicatrização. Na presença do exsudado da ferida forma-se um gel que proporciona um meio rico em ácido hialorónico capaz de promover a cicatrização, estando indicado em feridas crónicas – úlceras de pressão, do pé e da perna, livres de tecido necrosado e infecção.
O apósito deve ser colocado directamente sob a ferida limpa, requerendo um penso secundário (ex. gaze, espuma) e pode permanecer na ferida até um máximo de 3 dias. Assim que a epitelização se tiver iniciado, a sua aplicação deve ser suspensa.
Material de Penso com Ácido hialurónico comercializado: Hyalofill® (Convatec).
Colagénio
O colagénio é uma proteína endógena presente na pele e que está implicado na divisão e migração dos fibroblastos e no crescimento dos queratinócitos.
O colagénio comercializado é obtido a partir da cartilagem da traqueia dos bovinos e, apresenta-se sob a forma de pó altamente higroscópio, capaz de manter um ambiente húmido na interface ferida/penso favorável ao processo de cicatrização. Estimula ainda a angiogénese e o crescimento dos fibroblastos, promovendo a proliferação e migração dos fibroblastos e criando uma barreira protectora contra as infecções bacterianas.
Está indicado em feridas crónicas sem evolução, isentas de tecido necrótico ou fibrinoso e de infecção, previamente limpas. A sua aplicação deve ser realizada de forma uniforme sobre a área lesada requerendo um penso secundário (ex. gaze, espuma). Atendendo a que se trata de uma substância biodegradável, a sua remoção deve ser realizada com soro fisiológico.
Material de Penso com Colagéneo comercializado: Catrix® (ICN Portugal).
Colagénio com Celulose Regenerada Oxidada
Consiste numa matriz seca congelada e estéril de colagénio (55%) e celulose regenerada oxidada (45%). Na presença de exsudado da ferida, a matriz absorve-o formando um gel biodegradavel que se liga às proteases – metaloproteases, elastases e plasminas – enzimas que produzidas em excesso degradam as fibras de colagénio, impedindo desse modo a cicatrização. Para além disso, têm ainda capacidade de ligação a factores de crescimento protegendo-os.
Assim sendo, está indicado em feridas crónicas (úlceras de pressão, vasculares e diabéticas) isentas de tecido necrosado ou infecção.
Como penso secundário pode ser utilizada gaze, hidrocolóide ou poliuretano, podendo permanecer na ferida 1 a 3 dias dependendo da quantidade de exsudado.
Material de Penso com Colagéneo e celulose regenerada oxidada comercializado: Promogran® (Johnson & Johnson).
Filmes
Neste grupo incluem-se as películas semi-permeáveis, ou seja, permeáveis ao vapor de água e aos gases, mas impermeáveis à água e aos microorganismos. Podem ser compostos por diversos tipos de materiais, dependendo da marca comercial – poliuretano, silicone, hidrocolóide, copolímero acrílico com ou sem álcool, oxido de polietileno com água.
Podem ser usados como apósitos primários na fase final do processo de granulação e epitelização em feridas com pouco ou mesmo nenhum exsudado ou ainda para proteger a pele sã de fricções. Podem igualmente ser usados como apósito secundário na fixação de outro material de penso.
Caracterizam-se pela sua transparência (ver Figura 8) permitindo pois a visualização da ferida, podendo permanecer nesta até um máximo de 7 dias.
Estão no entanto contra-indicados em feridas infectadas.
Figura 8 – Apósito sob a forma de filme de hidrocolóide.
Filmes comercializado:
Poliuretano: Alevin Thin® (Smith & Nephew); Hydrofilm® (Hartmann); Tegaderm® 3M (3M); Omiderm® (JMV); Opsite® (Smith & Nephew); Suprasorb® F Thin (Novamed);
Silicone: Silon TSR® (Expomédica);
Hidrocolóide: Varihesive® Extra Fino (Convatec); Askina® Biofilm Transparente (B. Braun); 3M Tegasorb® Thin (3M); Suprasorb® H (Novamed);
Copolímero acrílico com álcool: Band-Aid Spray (Johnson& Johnson);
Copolímero acrílico sem álcool: Calilon (3M);
Óxido de polietileno com água: 2nd skin (JMV)
Considerações Finais
A selecção adequada do material de penso é um processo complexo dependente de vários factores entre os quais se destacam o tipo de ferida a tratar (etipologia, extenção, localização, presença de exsudado, de infecção, etc.), o estado de saúde do doente bem como do conhecimento das características de todos e cada um dos materiais disponíveis. Assim, é importante definir um plano de tratamento que passa primariamente pela avaliação da ferida, posteriormente pela definição da prioridade do tratamento, à qual se segue a definição do objectivo do material a utilizar e finalmente deverão ser consideradas as diferentes opções.
Para que essa selecção seja rigorosa, deve assentar em critérios científicos baseados em informação fidedigna, objectiva e rigorosa mas, também em critérios económicos, sendo ainda de primordial importância a experiência e os conhecimentos de todos os profissionais envolvidos.
Assim deverá sempre que possível existir uma equipa multidisciplinar – médico, enfermeiro, farmacêutico, nutricionista – em torno deste complexo assunto, de forma a que a conjugação do saber de todos possa contribuir para a saúde e bem estar do doente.