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Mães que abandonam bebés. “Não podemos julgar. Por trás, há desespero”

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O caso do bebé abandonado à porta do quartel dos Bombeiros Sapadores de Leiria, na madrugada de domingo, 19 de outubro, reavivou a discussão sobre o abandono de crianças e a falta de apoio dado às mulheres durante a gravidez e pós-parto.

 

Se muitas pessoas apontaram (novamente) o dedo a esta mãe, lançando-lhe julgamentos, há quem relembre que é preciso combater um estigma.

A maioria das mulheres que abandonou filhos recém-nascidos não tomou esta decisão de ânimo leve, lembram os especialistas. Quando precisaram de ajuda, não a tiveram. Não foram ouvidas. Ninguém lhes deu a mão. Nunca tiveram colo.

O  primeiro passo a tomar – a par do cuidado do bebé – é, portanto, perceber o que está por detrás deste ato, ouvir e perceber esta mulher, como explicou a psicóloga Tânia Correia, fundadora da Clínica 3 M’s, ao Notícias ao Minuto.

Para a especialista em parentalidade consciente, relações familiares, crianças e adolescentes, não há dúvidas que “existem vários fatores” associados a estas situações de abandono, no entanto, o facto da “saúde mental estar comprometida, é o mais comum”.

Depressões, patologias e falta de companheirismo e acompanhamento

“Um dos cenários é podermos ter uma depressão pós-parto que, geralmente, já se começava a construir durante a gravidez e que depois, no pós-parto, com as questões hormonais, com muitas vezes o tipo de parto – algo que também importa ser falado-, há uma série de fatores que podem levar a mulher a um ponto em que sente que não é capaz de cuidar deste bebé, que sente que este bebé vai estar melhor sem ela e que pode levar a esse cenário de abandono”, realçou Tânia Correia, notando que há situações ainda mais complicados.

“Há patologias ainda mais graves, com contornos mais sérios, como psicoses. Mulheres que entram em delírio, que pensam, por exemplo, que aquele bebé veio a este mundo para fazer mal. Aí abandonam ou, infelizmente, o problema é ainda mais grave”, lembrando casos em que ocorreram “homicídios” nestas circunstâncias.

Tânia não tem dúvidas que estes são “os cenários mais comuns”. Mas a falta de apoio de um parceiro, da rede familiar ou de amigos, também pesa.

“É um dos principais fatores. Muitas destas mulheres, desde muito cedo, sempre se sentiram desconectadas da família. Tinham pouco vínculo com as mães e com os pais. E o nascimento de um bebé é quase um arrastar desta falta de vínculo, de não se conseguirem conectar, de não conseguirem sentir aquele amor que as relações dão. Muitas destas mulheres não têm uma rede ou, quando têm, é uma rede muito pobre, quer no número de pessoas, quer no tipo de relações”, lembrou a psicóloga.

Em causa estão não só pais ausentes (ou negligentes), como “amigos que não estão verdadeiramente presentes” e “companheiros que ou não estão envolvidos durante a gravidez ou estão envolvidos de uma forma muito negativa”.

“Continuamos a ter muitas mulheres que são humilhadas durante a gravidez. Há comentários constantes em relação ao seu corpo, em relação à forma como já não são femininas agora. Isso continua a existir muito”, revelou, sublinhado que o papel dos profissionais de saúde é muito importante para diagnosticar esta debilidades.

“Acho que também temos que pôr aqui um bocadinho o dedo na ferida e trazer o papel dos profissionais de saúde nestes casos. Continuamos a ter muitas mulheres que vão ao centro de saúde, por exemplo, e há um excesso de preocupação com o peso que já ganharam. Estamos ali a ver um quilo, 500 gramas, e a tornar isto um tema. Mas ninguém lhe pergunta como é que ela se tem sentido. Perguntar verdadeiramente. Não é só perguntar para pôr um certinho na ‘checklist’. É tentar perceber efetivamente”, alertou, recordando que “hoje em dia já temos até instrumentos, questionários que permitem avaliar como está a saúde mental das mulher” e “muitos profissionais continuam a não ter em conta este aspecto”.

Abandonos “podiam ser prevenidos”

Portanto, “às vezes, estes cenários podiam ser prevenidos, se alguém se apercebesse deles desde cedo”.

A um nível já mais macro, por exemplo, nota a especialista, devia “haver mecanismos do Estado para dar resposta” às grávidas, uma vez que há profissionais de saúde que até se apercebem que algo de errado se passa, mas depois não sabem o que fazer com essa informação.

“Não sabem para onde encaminhar. Ou até encaminham para a psicóloga do serviço, só que a grávida só tem vaga daqui a um ano. Daqui a um ano o bebé já mais que nasceu. Portanto, estas mulheres estão ao abandono. Ao abandono das relações familiares, ao abandono das relações de amizade, ao abandono do Estado, dos profissionais de saúde. É um lugar completamente solitário por isso, devíamos colocar a questão ao contrário: o que é que foi feito para esta mulher conseguir ficar com o bebé? E não porque é que o abandonou”, notou, considerando que seria muito importante que a sociedade considerasse a saúde mental de uma grávida “essencial”. Tão essencial como o estado físico.

“Se virmos que uma grávida está com a tensão extremamente alta não encolhemos os ombros. Se as análises vêm completamente alteradas, também não o fazemos. Então porque é que quando falamos de saúde mental, varremos para debaixo do tapete? Tem de haver uma alteração a nível social de como é que isto é visto” porque, como recordou Tânia Correia ao Notícias ao Minuto, “muitas vezes, já houve uma vizinha que viu esta mulher cabisbaixa, uma colega de trabalho que se apercebeu que esta não estava a criar uma relação com o bebé”.

“Precisamos, então, todos estar sensibilizados e tentarmos dar atenção a este tema”, advertiu.

Criar mecanismos para ajudar as grávidas que se sentem desamparadas pode então ser a chave para diminuir o número de bebés abandonados à nascença que, em seis anos, chegou aos 50. “O Estado deve proporcionar mais serviços”, a sociedade deve saber a quem recorrer e ser solidária, o Serviço Nacional de Saúde deve aumentar o número de psicólogos, principalmente, especializados na área do perinatal.

E, quando diagnosticado algum tipo de problemas, algum “sinal de alarme” durante a gravidez, “a partir do momento em que o parto acontece ou que está próximo de acontecer tem que haver uma atenção redobrada”.

“Tem que haver disponibilidade para estas mulheres. Um acompanhamento muito próximo. E ser o Estado, às vezes, a criar quase uma rede para compensar a rede que estas mulheres não têm de outra forma”, evidenciou ainda a psicóloga ao Notícias ao Minuto.

Sentem que “não são capazes de tomar conta do bebé e não são ouvidas

Ao consultório de Tânia chegam muitas mulheres que sentem que “ninguém as compreende” e que “não podem contar com ninguém”. As suas emoções, medos e dúvidas foram desvalorizados por “lugares comuns” e “frases feitas”.

“Claro que consegues tomar conta do teu filho” e, se for o segundo filho, “quem consegue tomar conta de um, consegue tomar conta de dois”, são apenas alguns dos exemplos que não devem ser ditos a alguém que já está fragilizado.

Para Tânia, para algumas destas mulheres, bastaria sentirem-se ouvidas, acolhidas, “abrir um espaço para o diálago” para evitar situações extremadas como a que aconteceu, em Leiria, no passado domingo.

“Não podemos romantizar o abandono de bebés, mas também não podemos julgar. Por trás de muitas destas mulheres, há desespero. O sentimento de que não vão ser o melhor para este bebé. Há casos onde isto vem mesmo de um lugar de amor e preocupação. Sendo esse amor a capacidade de assumir que não vai ser o melhor para esta criança. De não conseguir dar-lhe o que ela merece”, ressalvou a também escritora.

A clínica 3M’s já ajudou “várias mães a reverter o processo de abandono”. Na sequência do que já foi dito a acima, para que uma mulher consiga cuidar de um bebé, “primeiro tem de ser capaz de cuidar de si mesma” e “muitas destas mulheres estão completamente desconectadas de si, nunca souberam o que é ser cuidadas, acarinhadas, apoiadas”.

Daí, um dos primeiros passos a dar seja, como explicou Tânia, perceber se esta pessoa “vai precisar de medicação e de acompanhamento ou se está num ponto que conseguimos fazer o acompanhamento sem o apoio da medicação”.

A partir daí é apoiar a mulher a ser “capaz de ser cuidadora de si própria, a olhar para si de uma outra forma, a conhecer-se. A saber quem é”, porque “muitas destas mulheres não fazem ideia de quem são”.

“Estiveram anos e anos só a viver em piloto automático e a responder e a superar desafios num lugar de solidão completa. Muitas vezes, só o processo, a pessoa ter ali alguém que apoia, já é uma experiência única na vida destas mulheres. Elas nunca tinham experienciado o que é ter colo. O que é ter alguém a olhar para si. O que é ter alguém que acredita em si. A dizer que vai conseguir”, afirmou a especialista.

“Dar a mão com força e agarrar esta mulher”

Durante esse processo, os profissionais tentam desconstruir as suas histórias de vida, perceber o vínculo com os pais, que tipo de relações desenvolveram ao longo da vida.

E depois há uma fase ainda mais difícil porque, quando elas estão, finalmente, a se reequilibrar – porque não têm logo acesso às crianças, as instituições precisam de algum tempo, de ter provas de que são capazes de cuidar -, quando vão visitar os filhos às instituições, percebem que, “afinal, eles estariam melhor com elas do que ali”.

“E esses meses, em que elas [mães] estão a visitar os filhos e saem de lá sem eles. Quando já estão capazes de abrir o seu coração para os amar, sofrem muito. Muito mesmo. É duríssimo. É muito complicado. É aí que nós, que estamos a dar acompanhamento psicológico, precisamos de dar a mão com força e agarrar esta mulher para que ela não se desequilibre de novo com aquela dor de assistir e de se sentir culpada de esta criança estar ali. De se sentir egoísta e com culpa”, acautelou a psicóloga.

E o pai? Onde está?

Quando uma criança é abandonada, geralmente, os dedos em riste só apontam à mãe. “Está enraizado na sociedade que a mãe tem a obrigação de querer o bebé e é que falhou”. Não o pai, que continua a ser visto por muitas pessoas como um simples apoio. Uma perspectiva que precisa de começar a mudar, uma vez que, como recordou ao Notícias ao Minuto, Tânia Correia, “os dois concretizam o abandono”.

Aliás, “muitas vezes o pai do bebé é a parte negligente desde o início e a causa de levar a mulher aquele ponto”.

À 3M’s chegam muitas mulheres que, ao contarem aos companheiros que estão grávidas, “recebem como resposta que, a partir de agora, está por sua conta”.

Em alguns casos, quando se trata de relações extraconjugais, acusam-nas mesmo de quererem “estragar-lhes a vida”.

Cuidado com bebé abandonado deve ser redobrado. Muito pele a pele, muito trabalho de “pertença”, de vínculo

Apesar da tenra idade, os recém-nascidos abandonados podem ficar com os traumas do abandono para toda a vida. Para que isso não aconteça, é preciso ir além do tecto e da comida. É preciso assegurou que estes bebés são acolhidos, acarinhados, mimados.

“A literatura tem-nos mostrado ao longo dos anos que a rejeição, até durante a gravidez, já é sentida pelo bebé, porque há uma grande ligação entre o bebé e o cérebro da mãe. Um bebé abandonado pode ficar com algumas marcas em termos de vínculo. Quanto mais o mundo for capaz de o receber, de haver muito contacto com este bebé nos primeiros tempos, não precisamos só de locais que recebam estes bebés e que assegurem que estes bebés não passam fome nem apanham frio. Precisamos que exista mesmo muito contacto, muito pele a pele com estes bebés. Quanto mais medidas reforcem o vínculo e a sensação de pertença deste bebé, melhor. A sensação de pertença e de abandono precisarão de ser tratados algures na história deste adulto”, explicou Tânia Correia.

Além deste primeiro acolhimento, deve ser feito também um trabalho com os futuros cuidados destas crianças, que serão essencais para que as sequelas deste início de vida atribulado se tornem cada vez mais esbatidos no tempo, na memória e até no corpo.

“O ideal é começar a trabalhar com quem forem os cuidadores deste bebé, desde sempre. Se adotar este bebé, tenho de ter consciência, apoio, para perceber que tenho de ter cuidados redobrados com este bebé. Para que ele tenha o sentimento de pertença. Para sentir conexão e não sentir abandono. Com qualquer bebé teria mas com este vou ter de trabalhar ainda mais na sensação de pertença, de ser bem-vindo, desejado. Isso tem de ser trabalhado com os adultos desde sempre”.

Recorde-se que, segundo o Jornal de Notícias, em seis anos, 50 bebés foram abandonados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida em Portugal, situações-limite, em que as mães enfrentam grande dor e angústia, mas não vislumbram outra saída.

O caso mais recente  – que se tenha conhecimento – ocorreu no passado domingo, em Leiria. Uma mulher, de 27 anos, enfermeira de profissão, deixou o filho recém-nascido, com menos de 24 horas de vida e ainda com o cordão umbilical, à porta de um quartel de bombeiros.

Dentro do saco onde estava o bebé, deixou fraldas, uma manta e leite. O menino estava quente e bem cuidado. Antes de o abandonar, foi captada pelas câmaras de videovigilância a hesitar e em lágrimas.

De acordo com o Correio da Manhã, a mulher, apesar de ter sido constituída arguida, está a visitar o filho e poderá até ficar com ele.

 

Leia na íntegra em Notícias ao Minuto