Pretende-se com o presente artigo realizar uma análise reflexiva sobre a temática do sobrevivente de Cancro de Cabeça e Pescoço, analisando o impacto do cancro na pessoa e família (pessoa significativa) e as alterações da qualidade de vida daí decorrentes, para a melhoria da prestação de cuidados de enfermagem a estes doentes.
Impacto do Cancro de Cabeça e Pescoço na Qualidade de Vida – Análise Reflexiva
Susana Miguel;
Serviço de CCP/ORL, IPO Lisboa
Enfermeira Especialista
Mercedes Gudiño,
Serviço de CCP/ORL, IPO Lisboa
Andraia Silva
Serviço de CCP/ORL, IPO Lisboa
Resumo: O impacto do Cancro de Cabeça e Pescoço implica importantes alterações que condicionam significativamente o estilo de vida do doente, na medida em que podem existir mudanças na imagem corporal, na respiração, na mastigação e na comunicação. A sobrevida do Cancro de Cabeça e Pescoço tem vindo a aumentar, em consequência do diagnóstico precoce e eficácia do tratamento, em consequência cresce também a preocupação com a Qualidade de Vida destas pessoas.
Pretende-se reflectir sobre a temática deste sobrevivente, analisando o impacto do cancro na pessoa e família e as alterações da qualidade de vida daí decorrentes, com o objetivo da melhoria da prestação de cuidados de enfermagem.
Palavras-chave: Impacto Cancro, Cancro Cabeça e Pescoço, Qualidade de Vida, Sobreviventes.
Abstract:Head and Neck Cancer’s impact implies important changes affecting patient’s life style significantly, in the way that there may be changes in body image, breathing, mastication and communication. Head and Neck cancer survival has been increasing, as a result of an early diagnosis and treatment effectiveness, consequently increasing also the concern with these people’s quality of life.
We intend to reflect about this survivor’s theme, analyzing the impact of cancer in the individual and his family and in the consequent quality of life changes, aiming a better nursing care.
Keywords: Cancer Impact, Head and Neck Cancer, Quality of Life, Survivors.
I. O CONTEXTO
Com os avanços científicos, para muitas neoplasias foi possível obter a cura e para outras, prolongar a vida para além do que seria de esperar pela história natural da doença. Para muitos doentes o cancro deixou de ser uma doença iminentemente fatal, tornando-se uma doença crónica que dura meses ou anos, muitas vezes com tratamentos complexos (Pimentel, 2003).
O desenvolvimento das novas terapêuticas (cirurgia, radioterapia, quimioterapia e terapêutica biológica) permitiu um aumento considerável da sobrevivência do doente oncológico, no entanto por vezes estão presentes efeitos adversos graves (Pimentel, 2003).
As terapêuticas cirúrgicas e não cirúrgicas dos tumores malignos na área de cabeça e pescoço, com frequência originam um elevado grau de morbilidade, com importantes alterações funcionais ao nível da respiração, mastigação, deglutição, fonação, e alterações estéticas com graves implicações na vida de relação do doente (Caçador, Adónis, Pacheco, Estribeiro e Olias, 2004).
Pelo descrito, torna-se essencial incluir nos objetivos terapêuticos a noção de qualidade de vida (Caçador, et al., 2004). A qualidade de vida de um doente oncológico “representa a maneira como ele se vê a si próprio, sendo portanto uma noção totalmente subjetiva e individual, influenciada pela sua cultura, diferenciação, crenças, religião e expectativas em relação à doença e terapêutica” (Caçador et al., 2004).
Pretende-se com o presente artigo realizar uma análise reflexiva sobre a temática do sobrevivente de Cancro de Cabeça e Pescoço, analisando o impacto do cancro na pessoa e família (pessoa significativa) e as alterações da qualidade de vida daí decorrentes, para a melhoria da prestação de cuidados de enfermagem a estes doentes. Na medida em que sabemos que o enfermeiro tem um importante papel no apoio e orientação ao doente e família na vivência do processo de doença, tratamento e reabilitação afetando definitivamente a qualidade de vida futura (Instituto Nacional do Câncer, 2008).
Importa antes de prosseguir contextualizar do ponto de vista estatístico a realidade do doente com cancro de cabeça e pescoço. Segundo dados do Globocan referentes a 2008, no mundo, existem 12.662 novos casos de cancro e estão estimados 7.564 casos de morte por cancro, (Globocan 2008: Section of Cancer Information – World). Na tabela podemos ver a incidência e a mortalidade dos principais tumores na área de Cabeça e Pescoço, no Mundo e em Portugal.
Tabela 1 – Taxa de incidência e mortalidade em Portugal e no resto do Mundo dos principais tumores de Cabeça e Pescoço
Incidência de Cancro na Cabeça e Pescoço | |||||
Lábio e cavidade oral | Nasofaringe | Laringe | Tiroide | ||
Incidência % | Mundo | 2.1. | 0.7 | 1.2 | 1.7 |
Portugal | 2.4 | 0.3 | 1.4 | 1.5 | |
Mortalidade % | Mundo | 1.7 | 0.7 | 1.1 | 0.5 |
Portugal | 2.3 | 0.3 | 1.7 | 0.3 |
Fontes: dados relativos a Portugal: Globocan 2008. Section of Cancer Information – Portugal. International Agency for Research Cancer. In http://globocan.iarc.fr/factsheet.aspp
Dados relativos ao resto do Mundo: Globocan 2008. Section of Cancer Information – World. International Agency for Research Cancer. In http://globocan.iarc.fr/factsheet.aspp
Na área de Cabeça e Pescoço, são esperados para o ano 2013, 41.380 novos casos de cancro da cavidade oral e faringe, nos Estados Unidos (American Cancer Society, 2013). A taxa de incidência é duas vezes maior nos homens do que nas mulheres (American Cancer Society, 2013). Recentemente tem sido atribuída importância a novos fatores de risco como o vírus de Epstein-Barr ou o Vírus do Papiloma Humano especialmente nos tumores da nasofaringe e laringe, respetivamente (Herchenhorn e Dias, 2004).
Por outro lado, de 2005 a 2009, as taxas de mortalidade diminuíram 1,3% por ano nos homens e 2,2% por ano nas mulheres (American Cancer Society, 2013).
O cancro altera todos os domínios da Qualidade de Vida, as sequelas dos tratamentos, que podem surgir ou persistir durante anos, muitas vezes repercutem-se no bem-estar dos sobreviventes (Pinto e Ribeiro, 2006). Englobando todas as fases, cerca de 84% das pessoas com cancro da cavidade oral e faringe sobrevive após um ano de diagnóstico. As taxas de sobrevida relativa aos 5 e 10 anos situam-se nos 62% e 51%, respetivamente (American Cancer Society, 2013).
II. Sobrevivente de Cancro
A terminologia de sobrevivente de cancro surge na década dos 80, como consequência da melhoria na eficácia nas terapias curativas, bem como, na mudança de prognóstico da doença oncológica (Pinto e Ribeiro, 2007).
A Sobrevivência ao cancro pode ser definida de diversas maneiras, segundo diferentes autores. The National Cancer Institute (2004) define a sobrevivência ao cancro dando ênfase “à saúde e a vida de uma pessoa depois do tratamento do cancro, até ao final da vida. Aborda questões relacionadas com aspetos físicos, psicossociais e económicos relacionados com o cancro, além das fases de tratamento e diagnóstico. Sobrevivência inclui questões relacionadas com a capacidade de obter cuidados de saúde, acompanhamento do tratamento, efeitos tardios do tratamento, segundos cancros, e qualidade de vida”, nesta perspetiva os membros da família, amigos os prestadores de cuidados fazem também parte do processo de sobrevivência.
Miller (2011) considera que a definição de sobrevivência ao cancro engloba “ausência de doença após a conclusão do tratamento”, e “o processo de viver com, através e além de cancro”. Segundo esta definição a sobrevivência do cancro começa no momento do diagnóstico, inclui as pessoas que continuam a ter tratamento para reduzir o risco de recorrência ou para controlar a doença crónica (Miller, 2011). Para Funk, Karnell e Christensen (2012) a sobrevivência a longo prazo começa nos 5 anos após o diagnóstico, com a implicação que o cancro foi curado.
Mullan descreve a experiência de cancro em três fases, (Pinto e Ribeiro, 2007):
FASE AGUDA – inicia-se com o diagnóstico e continua até ao fim do tratamento. Nesta fase existe presença dos efeitos colaterais dos tratamentos. Em termos sociais, a adaptação à mudança de papel na estrutura familiar e no trabalho, em termos espirituais pensamentos sobre a vida e morte, muitas vezes existe a necessidade de apoio psicossocial.
FASE INTERMÉDIA – começa com o fim do tratamento – também denominada fase de remissão da doença. A pessoa move-se entre o “estar doente” e “estar bem”, existe alguma esperança cautelosa e também presença do medo da recidiva.
FASE PERMANENTE – engloba a duração de vida do sobrevivente, quando o risco de recorrência é pequeno, em que se pode considerar equivalente a uma cura, ou uma remissão controlada. Nesta fase, o doente experimenta um aumento da confiança na sobrevida.
O enfermeiro inserido na equipa multidisciplinar tem um papel muito importante em todas estas fases. Na medida em que tem em conta as características específicas do doente (condições de vida, diversidade cultural, papel social, valores e crenças individuais, entre outros), individualizando os cuidados; de maneira sequencial informa dos procedimentos dos tratamentos a realizar, e trabalha com a pessoa promovendo o seu autocuidado (Pastor, Alonso, Basallote, Cabello, Contreras, Cubillo, et al, 201112). O enfermeiro, devido à sua formação, é um profissional que pode participar no planeamento e execução de ações preventivas, de deteção precoce, ou de promoção de estilos de vida saudáveis na população de sobreviventes, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.
III. Que Qualidade de Vida?
A qualidade de vida relacionada com a saúde e a sua avaliação tem-se tornado progressivamente mais importante nos cuidados de saúde, especialmente no domínio das doenças crónicas. Tradicionalmente, a meta dos cuidados médicos para os doentes oncológicos foca-se na sua sobrevivência e no controlo local de sintomas e complicações, assentando num modelo biomédico. Contudo esta abordagem é deficitária em conhecimento e compreensão do bem-estar mental e emocional dos doentes.
A qualidade de vida relacionada com a saúde refere-se à perceção do doente acerca dos efeitos da sua doença e o impacto da mesma nas suas atividades de vida diária, e assenta em duas premissas: Primeiro, é um conceito multidimensional, que incorpora os domínios físico, psicológico, social e emocional; segundo é subjetiva e deve centrar-se no doente refletindo as suas experiências (Leung, Lee, Chien, Chao, Tsai e Fang, 2011). Pimentel (2003, p.191) salienta que não existe uma definição única de qualidade de vida relacionada com saúde, descrevendo-a como “a perceção dos doentes sobre as suas capacidades em quatro grandes dimensões: bem-estar físico e atividades quotidianas, bem-estar psicológico, relações sociais e sintomas.”
A Qualidade de Vida assume particular relevância nas pessoas com cancro da Cabeça e Pescoço porque, a interação social e a expressão emocional dependem em grande parte da estrutura funcional e integridade dessa parte do corpo. Funções básicas como a capacidade de emissão de voz, a respiração, a salivação, a mastigação, também lhe estão associadas (Pinto e Ribeiro, 2006).
Neste contexto um doente oncológico de cabeça e pescoço sofre modificações pluridimensionais que podem condicionar consideravelmente a sua qualidade de vida relacionada com a saúde, justificando a importância da integração da avaliação deste parâmetro na prática clínica em oncologia (Silveira, Gonçalves, Sequeira, Ribeiro, Montes e Pimentel, 2012).
Tanto o diagnóstico como o tratamento do cancro têm um grande impacto na Qualidade de Vida do doente, pois irão produzir alterações muito importantes e duradouras no tempo. A avaliação da qualidade é importante na compreensão das diferenças individuais na resposta à doença, com objetivo de desenvolver intervenções preventivas, intervindo precocemente de forma a maximizar a qualidade de vida (Pinto e Ribeiro, 20078).
Instrumentos de Medida da Qualidade de Vida (QoL)
Existem questionários de avaliação da qualidade de vida específicos para doentes com cancro de cabeça e pescoço. É feita uma breve apresentação de três destes instrumentos que se encontram validados para português, o que torna estas ferramentas disponíveis para serem aplicados com segurança na nossa população, visando melhor entender o real impacto do cancro de Cabeça e Pescoço na vida dos indivíduos afetados, o que pode ajudar na escolha terapêutica e auxiliar no direcionamento dos programas de reabilitação e suporte psicossocial (Vartanian, Carvalho, Furia, Junior, Rocha, Sinitcovisky, et al, 2007).
– Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida da Universidade de Washington (UW-QOL). A versão atual é composta por doze questões relacionadas com funções específicas de cabeça e pescoço: aparência, atividades, recreação, deglutição, mastigação, fala e função do ombro. Assim como relacionadas com a atividade, recreação, dor, humor e ansiedade.
– Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida: Functional Assessment of Cancer Therapy (FACT-H&N). Incluí 5 domínios: físico, sociofamiliar, emocional, funcional e doze questões específicas do Cancro de Cabeça e Pescoço.
– Questionário de Avaliação de Qualidade de Vida: European Organization for Research and Treatment of Cancer (EORTC). Avalia sete domínios: dor, deglutição, sentidos, fala, comer social, contacto social e sexualidade, além de apresentar onze itens específicos sobre problemas dentários, trismo, xerostomia, saliva espessa, tosse, mal-estar, consumo de analgésicos, suplementos nutricionais, sonda para a alimentação e perda/ganho de peso. Deve ser aplicado conjuntamente com o questionário Quality of Life Questionnaire Core-30 da EORTC, (avalia a qualidade de vida global em indivíduos portadores de neoplasia em geral).
Preferencialmente o questionário deve ser preenchido pelo doente, e na eventualidade de não ser possível, poderá ser um profissional de saúde treinado a aplicá-lo. Apesar de não existir um consenso na eleição do questionário mais adequado, vários autores recomendam que seja curto, conciso, fácil de entender, autoaplicado pelo doente, baixo custo, mínimo tempo de preenchimento e com critérios de validação psicométrica bem estabelecidos.
Impacto do Cancro na Qualidade de Vida
A American Cancer Society (2012), tendo por base as premissas de Ferrell (1997), define a qualidade de vida como um conceito amplo, multidimensional que considera o bem-estar social, físico, psicológico e espiritual de uma pessoa, todos eles interrelacionados (Figura 1).
Figura 1 – Dimensões da Qualidade de Vida, segundo a American Cancer Society (2012).
O bem-estar físico é o grau com que os sintomas e os efeitos colaterais como dor, fadiga, má qualidade do sono, alterações corporais, entre outros, podem afetar a capacidade de realizar as atividades diárias normais. A dimensão emocional ou psicológica refere-se à capacidade de manter o controlo sobre a ansiedade, depressão, medo de recorrência do cancro, problemas de memória e concentração, incapacidade para fazer planos de futuro e vulnerabilidade, entre os principais. Na dimensão social salienta-se principalmente as relações com familiares e amigos, incluindo a intimidade e sexualidade, as alterações na rotina da vida diária, assim como, preocupações com o emprego, seguros e impacto financeiro que também afetam o bem-estar social. Por fim, a dimensão espiritual é derivada do significado da experiência do cancro, quer no contexto da religião quer através da manutenção de esperança e resistência em face da incerteza sobre a saúde no futuro, valorização da vida e algumas mudanças nos valores e objetivos na vida. Por isto, o cancro é uma das doenças mais temidas da humanidade, pois altera de uma forma ou outra todas as dimensões da pessoa.
Mas apesar dos efeitos enunciados e de todas as mudanças, que a pessoa tem que fazer após um diagnóstico e consequente tratamento do cancro, também existem descritos, efeitos positivos que os doentes experimentam: “muitos sobreviventes relatam que ganharam maior apreço pela vida, melhoraram as relações com a família e amigos, sentem um acentuado senso de significado e propósito na sua vida, e tornaram-se mais eficazes a lidar com o stresse e outros desafios da vida, como um resultado da sua experiência com o cancro” (American Cancer Society, 2012).
Marques (201218), também ele sobrevivente de cancro, descreve no seu livro algumas destas alterações, a nível do impacto físico que o cancro tem na qualidade de vida da pessoa, patentes em expressões “só me faltavam os cheiros. Não pude sentir – mas sei que estavam lá – os odores do campo, da terra molhada, das plantas….” (Marques, 2012), ou o impacto psicológico: “costumo dizer que vou vivendo entre a esperança, o esquecimento e o medo” (Marques, 2012), ou até mesmo o impacto espiritual: “para a aprendizagem desta nova situação há dois parâmetros de transcendente importância: a fé e o tempo […] sinto ter ganho alguma qualidade humana neste trânsito da doença, isso reside justamente na aquisição de um grau superior de paciência e de tolerância. Passei a viver o dia-a-dia” (Marques, 2012).
Impacto do Cancro no Doente e familiares
Os efeitos tardios do cancro e dos seus tratamentos (cirurgia e/ou radioterapia e/ou quimioterapia) são uma realidade, com impacto significativo nos doentes na área de Cabeça e Pescoço. Os doentes tratados a tumores do trato aerodigestivo superior, podem ficar com alguma disfunção, podendo existir problemas com alimentação e hidratação, e em casos específicos mesmo ter necessidade de ser alimentados por sonda (National Institute for Clinical Excellence, 2004).
Funk, Karnell e Christensen, (2012), concluíram que após 5 anos, 50% dos indivíduos apresentavam problemas de alimentação, 28,5% sintomas depressivos, 17,3% dor. Em termos de comportamentos de risco 13,6% continuavam a fumar e 38,9% mantinham hábitos alcoólicos.
Existem também cirurgias em que é necessário a presença de traqueostomia ou traqueotomia, em que o doente tem de lidar com o estoma (definitivo ou temporário) e com a necessidade de reabilitação da fala. No caso de tumores da língua e boca podem também surgir problemas a longo prazo com a fala e alimentação. Estes doentes podem também apresentar, em resultado do esvaziamento cervical, muitas vezes associado a este tipo de cirurgia, problemas ao nível do pescoço e ombro. A realização de radioterapia pode originar problemas dentários, xerostomia e alterações da mucosa (National Institute for Clinical Excellence, 2004).
A doença oncológica não afeta apenas o doente, na medida em que ocorre num contexto de um sistema familiar produzindo efeitos negativos no funcionamento do sistema e em cada um dos seus elementos (Caleiras, 2012). Caleiras (2012) refere ainda que o diagnóstico de cancro num individuo “é capaz de afetar todo o sistema familiar e os seus elementos, a forma mais ou menos ajustada e adaptada como estes reagem e o modo como comunicam refletir-se-á em efeitos positivos ou negativos no doente. A família em especial o cuidador, passa a integrar nas suas rotinas diárias o apoio ao doente, nomeadamente, no vestir, alimentar-se, administração e gestão financeira, transporte entre outras. O controlo dos sintomas, a administração de terapêutica e a articulação com os profissionais de saúde são também atividades que necessitam de apoio (Caleiras 2012).
Não esquecendo as importantes alterações que o cancro de Cabeça e Pescoço produz, a família vai promover competências para lidar com as novas situações, sejam elas definitivas ou temporárias. Vai servir de auxílio para o doente e para enfermeiros, nas situações de fragilidade que o doente viverá ao longo do seu percurso no sistema de saúde e na comunidade.
Além das alterações decorrentes do tratamento oncológico no doente com cancro de cabeça e pescoço, importa também salientar pela sua especificidade as alterações/complicações que podem ocorrer na cavidade oral.
Complicações orais da terapia do Cancro Cabeça-Pescoço
As complicações orais (Tabela 2) resultam do cancro e das terapias usadas no tratamento causando efeitos agudos e crónicos e toxicidades que são sub-reportadas, sub-reconhecidas e sub-tratadas (Epstein, Thariat, Bensadoun, Barasch, Murphy, Kolnick, et al 2012), com elevado grau de complexidade e interferência no dia-a-dia.
Tabela 2 – Complicações orais do cancro e das terapias usadas no cancro de cabeça e pescoço
COMPLICAÇÕES | SINTOMAS | |
CRÓNICAS | DOR NA MUCOSA | Atrofia da mucosa, dor neuropática |
SALIVA | Viscosidade da saliva, hiposialia | |
ALTERAÇÃO NEUROSSENSORIAL | Alteração do paladar, halitose, alteração da mucosa | |
LIMITAÇÃO DO MOVIMENTO | Abertura e movimento dos lábios limitado; alterações na articulação temporo-mandibular; alteração da mobilidade da língua | |
INFECÇÃO | MUCOSA | Dor, halitose |
DENTAL | Desmineralização dentária, cáries | |
PERIODONTAL | Perda da inserção periodontal | |
RISCO DE LESÃO DA MUCOSA | NECROSE | Necrose do tecido mole e ósseo |
IMPACTO ESTÉTICO | Isolamento social, baixa qualidade de vida, depressão | |
DISCURSO | Isolamento social, depressão | |
MASTIGAÇÃO/DISFAGIA | Impacto sobre a ingestão de energia ou nutrientes |
Fonte: Epstein et al, 2012
Desta forma, reiteramos a necessidade dos profissionais da saúde, nomeadamente os enfermeiros, estarem atentos a estes aspetos, atuando com medidas preventivas para amenizar os efeitos secundários da radioterapia, fornecendo informações sobre o tratamento, considerando os desconfortos e orientando medidas para aliviá-los, além de promover suporte para reduzir a ansiedade e depressão, promovendo uma melhor reação do doente ao tratamento (Sawada, Dias, e Zago, 2006).
IV. Sobreviventes de cancro de cabeça e pescoço, que implicação para A PRÁTICA de cuidados?
A avaliação da Qualidade de Vida fornece avaliação individual do impacto da doença na perspetiva da pessoa. Permite compreender as diferenças individuais nas respostas à doença, desenvolvendo intervenções preventivas ou precoces de forma a potenciar a qualidade de vida (Pinto e Ribeiro, 2007). Deste modo pode resultar em alteração dos procedimentos terapêuticos e de reabilitação, e consequentemente, auxiliar na decisão terapêutica (Vartanian, Carvalho, Furia, Junior, Rocha, Sinitcovisky, et al, 2007).
Perante estes factos emerge a necessidade de se avaliar a Qualidade de Vida, tornando-a cada vez mais uma ferramenta imprescindível na orientação das melhores alternativas de tratamento e reabilitação do doente.
O cancro afeta muitas dimensões de saúde e bem-estar. Idealmente, o tratamento deverá não só prolongar a vida mas também diminuir os efeitos secundários da doença e potenciar a capacidade da pessoa retomar a sua vida normal (Pinto e Ribeiro, 2006).
Perante a complexidade de todo o processo de reabilitação o enfermeiro tem um papel muito importante no ensino ao doente e família, procurando minimizar e/ou detetar precocemente estas alterações. Como realça Fisher (2006, p.97) o enfermeiro é visto “…como professor, mentor, facilitador”.
O fornecimento de informação aos doentes é um dos fatores mais importantes do “suportive câncer care” ao longo de todo o continuum de cancro. O objetivo é preparar os doentes para o seu tratamento, aumentar a aderência ao tratamento, aumentar as suas capacidades de coping em relação à doença e promover a recuperação do doente (Husson, Mols e Poll-Franse, 2011).
O crescente movimento de sobrevivência fez centralizar de novo a preocupação na vida, após as necessidades do tratamento e reabilitação dos doentes de cancro. O trabalho para viver com doença residual ou com os efeitos do tratamento define as necessidades de reabilitação (McCray, 2000).
O processo de reabilitação deve incluir saneamento dentário, terapia de deglutição, fisioterapia, apoio psicológico e social. O doente deve ser tratado por uma equipa multidisciplinar, existindo uma inter-relação entre a equipa hospitalar, os cuidados primários e os serviços sociais (Pastor, Alonso, Basallote, Cabello, Contreras, Cubillo, et al, 2011).
Neste processo importa tambem detectar e tratar dependências nomeadamente álcool e tabaco (Pastor, et al, 2011). Num estudo realizado em Portugal (Silveira, Gonçalves, Sequeira, Ribeiro, Montes e Pimentel, 2012) verificou-se que 50% eram ex-fumadores, os autores salientam ainda os ex-fumadores abandonaram os hábitos tabágicos frequentemente, após a data de diagnóstico da doença.
Neste contexto o profissional de enfermagem tem um papel muito importante na promoção dos estilos de vida saudáveis podendo influenciar positivamente a saúde da sociedade, ajudando as pessoas a fazerem escolhas informadas de estilos de vida saudáveis: nas áreas da nutrição, do exercício e do uso do álcool e do tabagismo, (Sands e Wilson, 2003), isto porque a promoção da saúde é uma meta importante para as pessoas de todas as idades e situações de saúde (Sands e Wilson, 2003).
A American Cancer Society em termos de guidlines para sobreviventes de cancro, recomenda um conjunto de medidas com enfase na nutrição e exercício físico: alcançar e manter um peso saudável ao longo da vida, manter uma dieta saudável, adotar um estilo de vida fisicamente ativo, e limitar o consumo de álcool (Kushi, Doyle, McCullough, Rock, Demark-Wahnefried, Bandera, et al 2012).
Jacobs, Palmer, Schwartz, DeMichele, Mao, Carver et al (2009) tendo por base os pressupostos do Instituto of Medicine of the Nacional Academy, referemque a sobrevivência do cancro é uma das fases que tem sido negligenciada na área da prática clínica, educação ou investigação, pelo que considera quatro componentes essenciais centrados nos cuidados ao sobrevivente e dez recomendações para melhorar os cuidados prestados:
Principais componentes dos cuidados aos sobreviventes:
1- Prevenção de recidivas e novos cancros e outros efeitos tardios;
2- Vigilância da evolução do cancro, recidiva, ou tumores secundários; avaliação de efeitos clínicos e psicológicos tardios;
3- Intervenção sobre consequências/sequelas do cancro e seu tratamento;
4- Coordenação entre os profissionais especializados e os cuidados de saude primários para assegurar que todas as necessidades de saúde dos sobreviventes são supridas.
Recomendações para cuidar dos sobreviventes:
1- Aumentar a consciencialização sobre os sobreviventes de cancro;
2- Fornecer um plano de cuidados para os sobreviventes;
3- Desenvolver diretrizes de prática clínica para sobreviventes de cancro;
4- Definir os cuidados de Saúde de Qualidade para os sobreviventes de cancro;
5- Superar os desafios do Sistema de Saúde;
6- Encarar a sobrevivência como um problema de Saúde Pública;
7- Fornecer formação sobre a sobrevivência aos profissionais de saúde;
8- Preocupações com o emprego dos sobreviventes de todas as idades;
9- Melhorar o acesso aos seguros de saúde tornando-os adequados e acessíveis;
10- Investir na investigação.
V. Considerações Finais
Nas últimas décadas tem-se verificado uma melhoria significativa do prognóstico da pessoa com cancro. Os recentes avanços tecnológicos, na área da radioterapia, quimioterapia, cirurgia, e reconstrução, acompanhado de uma maior sensibilização das pessoas para esta patologia, tem proporcionado diagnósticos mais precoces, tendo o decurso da doença melhorado significativamente.
0 cancro deixou de ser uma fatalidade, pois em muitas da fases da doença é possível o controlo, permitindo grandes períodos de sobrevida. Os sobreviventes de cancro representam deste modo uma nova realidade nos serviços de saúde, assim os profissionais de saúde, devem conhecer as suas necessidades de forma a desenvolver intervenções adequadas, dirigidas aos processos educacionais e apoio psicossocial, à pessoa e à família, com vista ao bem-estar e qualidade de vida após a vivência de um cancro (Pinto e Ribeiro, 2007).
O enfermeiro é o profissional mais habilitado e disponível para apoiar e orientar o doente e família na vivência do processo de doença, tratamento e reabilitação, tendo impacto na qualidade de vida futura (Instituto Nacional do Câncer, 2008).
A monitorização das necessidades específicas dos sobreviventes de cancro torna-se fundamental para minimizar a morbilidade que lhe está associada e contribuir para ganhos em saúde, pelo que o aumento da sobrevida de pessoas portadoras de doença crónica coloca a tónica na premissa da Organização Mundial de Saúde, não chega “dar anos à vida”, mas é crucial que se dê “vida aos anos”.
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Nota do editor
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