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Hemodiálise: Viver com qualidade ou viver com a qualidade

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Revista Nursing

No contexto da qualidade de vida relacionada com a saúde são fundamentais e indispensáveis as percepções dos indivíduos sobre a sua própria saúde e não, meramente, as medidas clínicas tradicionais.

Título:

Hemodiálise: Viver com qualidade ou viver com a qualidade

Hemodialysis: To live with quality or to live with the quality

Nursing nº251

Autor:

V. Henriques

Enfermeira Clínica NephroCare de Braga

Resumo

O presente trabalho pretende descrever e comparar a qualidade de vida relacionada com a saúde das pessoas com Insuficiência Renal Crónica em Hemodiálise. Foi desenvolvido um estudo não experimental, transversal numa amostra de 112 pessoas com insuficiência renal crónica em tratamento de hemodiálise na Clínica NephroCare de Braga. Foi utilizado um instrumento de avaliação Sickness Impact Profile (PSIP-Portuguese Sickness Impact Profile) constituído por uma medida genérica de saúde, o Medical Outcomes Study 36-Item Short form Health Survey (SF-36). Os participantes estudados maioritariamente eram do género masculino (58,93%), com idade que varia entre os 22 e 92 anos [média (χ=63,10); mediana (τ =67)]. O tempo de diálise varia entre 2 meses a 17 anos. A maior parte dos doentes apresenta outras doenças associadas (58,60%) e complicações (93,2%). A doença associada mais referida foi a diabetes mellitus (34,20%). Os resultados evidenciaram um impacto negativo de algumas variáveis sóciodemográficas e clínicas e um elevado impacto positivo por parte da família. Neste trabalho foi reconhecida a importância da avaliação da qualidade de vida relacionada com a saúde como um indicador de excelência dos cuidados de saúde, reflectindo a voz do utente.

Palavras-chave: Hemodiálise, qualidade de vida, avaliação de resultados.

Abstract

The present paper aims to describe and compare the quality of life related to the health of people suffering from Chronic Kidney Failure in Hemodialysis. A non-experimental, transversal study was developed using a sample of 112 people with chronic kidney failure who are receiving dialytic treatment in the NephroCare’s Clinic of Braga. We used an evaluating instrument Sickness Impact Profile (PSIP-Portuguese Sickness Impact Profile) made up of a generic measurement of health Medical Outcomes Study 36-Item Short form Health Survey (SF-36). The majority of the participants studied were male gender (58,93%) ages between 22 and 92 years old [average (χ=63,10); median (τ =67)]. The time of dialysis varies between 2 months and 17 years. The majority of the patients had other associated illnesses and complications. The most prevalent associated is diabetes mellitus. The results showed the negative impact of some socio-demographic and clinical variables and a high positive impact from the family. In this paper we recognize the importance of the evaluation of the quality of life related to health as an indicator of excellence in health care, reflecting the point of view of the patient.

Keywords: Hemodialysis, quality of life, outcomes assessment.

Introdução

A visão da saúde direccionada para o funcionamento fisiológico do organismo constitui uma perspectiva cartesiana que, paulatinamente, se tem vindo a abandonar, e conceitos como o de qualidade de vida cada vez mais se vão impondo com menor dificuldade na linguagem científica (1). Por outro lado, o que tradicionalmente era medido ou quantificado por taxas de mortalidade e/ou morbilidade, nos dias de hoje, adquire e encontra-se balizado por aspectos mais profundos que englobam múltiplos factores do universo de cada um de nós. Este trajecto onde se declara uma mudança de enunciados é passível de se observar em termos de definições e conceitos. Veja-se a introdução, quatro décadas mais tarde, de uma definição de saúde mais positivista em que é enunciada pela Organização Mundial da Saúde como “a extensão em que um indivíduo ou grupo é, por um lado, capaz de realizar as suas aspirações e satisfazer as suas necessidades e, por outro, de modificar ou lidar com o meio que o envolve” (2).

Neste contexto, vários são os autores (3) que defendem que a saúde é encarada como uma realidade dinâmica que diz respeito ao bem-estar global das pessoas e das comunidades e na qual estão implicadas as dimensões orgânica, psicológica e relacional, assim como as dimensões sociais e culturais da organização e do funcionamento das sociedades. No conceito de saúde actual inclui-se a consciência de que a doença é um processo simultaneamente exógeno e endógeno e não se refere, exclusivamente, às perturbações objectivamente detectáveis, convergindo a situação fisiológica e mental com o suporte relacional e o meio social.

A saúde é um direito humano fundamental e um valor universal que desde há muito preocupa o Homem e que se deve assumir como um recurso ao alcance de todos. Pode ser definida como um equilíbrio funcional, mais ou menos estável, de cada ser vivo num meio ambiente que geralmente se faz acompanhar de factores desfavoráveis, em que, tanto a saúde como a doença se inscrevem num meio familiar e social que compreende o suporte social de que o indivíduos dispõem. Esta é uma perspectiva que considera a saúde como um estado, o que permite que pessoas sem doença se sintam doentes e que indivíduos com quadros de doença aguda (e.g. gripe) ou crónica (e.g. hipertensão, diabetes) se considerem saudáveis. Deste modo, é conceptualizado a saúde e a doença num continuum em que se de um extremo se coloca o estado de óptima saúde (completo bem-estar) no imediatamente oposto se encontra a morte. Neste conceito dinâmico existe uma área intermédia onde a separação entre saúde e doença não é absoluta, isto porque, para além da variável orgânica e vertente clínica são consideradas diferentes variáveis que se encontram sujeitas a influências externas e que são intrínsecas ao indivíduo.

Estudos desenvolvidos defendem que a saúde é um dos domínios mais importantes da qualidade de vida, sobretudo se o indivíduo se sente ameaçado pela doença. Neste caso, a saúde é percepcionada como um bem maior o que justifica a sobreposição dos dois conceitos (4). Efectivamente, o universo da doença acentua a necessidade de identidade e de estratégias quer clínicas ou de outra ordem, sendo mais incisiva nas situações de carácter de cronicidade. No caso particular da nossa análise em que a qualidade de vida é aplicada ao universo da doença crónica – Insuficiência Renal Crónica Terminal é, habitualmente, designada por Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde [QVRS]. Algumas definições que ilustram os diferentes usos do termo são apresentadas no Quadro 1.0. Há a referir que todos os constructos enunciam o impacto da doença/enfermidade ou do agravamento na qualidade de vida. Com efeito, este é o parâmetro transversal a todas as definições deste conceito ao que se alia o denominador comum de se tratar de um universo multidimensional e subjectivo, uma vez que integra a percepção do doente sobre a sua saúde que, naturalmente, é influenciada pela experiência pessoal de cada indivíduo e pelas suas expectativas, que podem colectivamente ser designadas como percepções de saúde (5).

Quadro 1.0 – Definições de Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde

Definições de qualidade de vida relacionada à  saúde

Qualidade de Vida Relacionada à Saúde

Autor(s)

 “É a valorização subjectiva que o paciente faz de diferentes aspectos da sua vida em relação ao seu estado de saúde.” Guiteras & Bayés, 1993, 179
 “Refere-se aos vários aspectos da vida de uma pessoa que são afectados por mudanças no seu estado de saúde, e que são significativos para a sua qualidade de vida.” Cleary et al, 1995, 191

 “É o valor atribuído à duração da vida, modificado pelos prejuízos, estados funcionais e oportunidades sociais que são influenciados por doença, dano, tratamento ou políticas de saúde.”

Ebrahim, 1995, 1384

As abordagens nas várias dimensões da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde assumem diferentes aproximações segundo o contexto de análise. Se por um lado, há a ter em conta a distinção da percepção da doença entre clínicos e doente, ou seja, entre ter uma doença (disease), sentir-se doente (illness) e comportar-se como doente (sickness). Por outro, a avaliação de critérios não poderá limitar-se a parâmetros clínicos tradicionais, uma vez que as medidas da vertente biológica não definem cabalmente e no seu todo o conceito de qualidade de vida, existindo a necessidade de intersectar outras dimensões para eliminar o efeito castrador da unicidade científica. Com efeito, se a perspectiva clínica é moldada pela história natural da patologia e da fisiologia sendo expressa por indicadores objectivos e mensuráveis como prognóstico, intervenção terapêutica, mortalidade ou comorbilidade associada. A perspectiva do doente centra-se na percepção de sintomas e grau de desconforto a eles associados, onde se engloba também a informação sobre outros casos similares que são traduzidos na representação social da doença. Ora, no contexto de tratamento hemodialítico as diferentes dimensões e perspectivas são passíveis de objecto de análise onde se considera e se cruza diferentes parâmetros e critérios relativos ao domínio físico, funcional, emocional e social como, de igual modo, a percepção do estado geral de saúde (6).

Neste contexto e no âmbito profissional de enfermeiros em Clínicas de Hemodiálise NephroCare, a presente análise pretende encontrar subsídios que permitam melhor compreender e avaliar a satisfação na óptica do hemodialisado como, de igual modo, a sua percepção da qualidade de vida relacionada com a saúde. A opção deste projecto relaciona-se com a forma que o ser humano é visto por nós, NephroCare, como um todo mais do que soma das partes e, perante a intervenção clínica necessária, que o seja mas com o horizonte fixo na contribuição para uma maior satisfação e melhoria na qualidade de vida daqueles que se encontram em diálise nas nossas clínicas.

O presente trabalho diz respeito à avaliação da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde (QVRS) em doentes com Insuficiência Renal Crónica Terminal (IRCT) em tratamento hemodialítico. Foram analisados todos os indivíduos a receberam tratamento na Clínica de NephroCare de Braga, num universo de n=112. Na avaliação da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde foi utilizada a versão portuguesa do Sickness Impact Profile (PSIP-Portuguese Sickness Impact Profile. Este instrumento tem sido utilizado como medida de QVRS numa grande variedade de doenças, nomeadamente, em doentes com Insuficiência Renal Crónica Irreversível (7). Desenvolvido nos Estados Unidos em 1972, com a primeira versão de 1976, este instrumento apresenta como objectivo a medição do nível de disfunção comportamental causada pela doença, através da percepção que cada indivíduo tem sobre o impacto da doença e do tratamento de Hemodiálise (8).

Todos os dados sociodemográficos e clínicos como, de igual modo, as informações obtidas pelo instrumento Sickness Impact Profile foram submetidos a meta-análises, análises de concordância e validação. Numa fase preliminar ao delineamento efectuou-se um estudo descritivo e exploratório, transversal a todas as variáveis envolvidas. Nesta análise, para além do cálculo dos parâmetros habituais foram utilizados os testes de Kolmorogorov-Smirnov e Levene para se concluir acerca da normalidade e homecedasticidade da população envolvida. Depois de analisados os resultados provenientes desta análise optou-se pela utilização de testes não paramétricos. A utilização destes deveu-se, por um lado, à escala de mensuração nominal ou ordinal em que se apresentavam a maioria dos dados e, por outro, ao não cumprimento das condições de aplicabilidade dos testes paramétricos.

Para tratamento dos primeiros dados juntamente com a descrição dos domínios do instrumento de QV foram utilizadas medidas de tendência central (frequência [σ] simples; frequência [φ] relativa; média [χ]; mediana [τ]) e medidas de dispersão (desvio padrão) obtendo como delineamento de trabalho as medidas de localização de amostra.É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. Posteriormente, procedeu-se a uma análise bivariada relativamente a todas as variáveis que pudessem estar relacionadas com a qualidade de vida. Para isso, foram utilizadas medidas de associação (correlação de Spearman) e os testes Mann-Whitney (duas amostras independentes), Kruskall-Wallis (mais de duas amostras independentes) e Friedman (mais de duas amostras relacionadas) tendo-se nestes dois últimos casos procedido às comparações múltiplas quando necessário. Através desta análise bivariada foram seleccionadas todas as variáveis que demonstraram ter alguma associação com a variável de interesse, procedendo-se em seguida a um estudo multivariado. Optou-se por regressão linear múltipla usando o modelo Forward Stepwise, pelo facto da variável independente ser contínua. Como consequência desta opção, resultante de uma escolha intencional para versatilidade de análise, a construção permitiu, efectivamente, ajustar a importância que cada co-variável teve sobre a variável dependente quando sujeita à influência conjunta das restantes. Foram criadas variáveis Dummy mas, no entanto, não foram excluídas as outliners, isto porque devido à proximidade da amostra foi possível explicar o aparecimento de correlações demasiado altas ou excessivamente reduzidas que em termos estatísticos seriam eliminadas, mas em contexto clínico apresentaram-se como pontuações indicativas de comprovação de regra. Refere-se, ainda, que ao longo do tratamento verificou-se a necessidade de direccionar a análise sempre que as variáveis demonstrassem um comportamento de redundância ou correlação baixa ou, ainda, para refutar ou confirmar domínios que por nosso conhecimento clínico nos parecessem significativos. O interesse estatístico conjugado com a percepção clínica resultou numa análise direccionada aos objectivos concretos para a melhoria de qualidade de vida a quem se encontra em tratamento de hemodiálise nas nossas clínicas NephroCare.

Caracterização da Amostra

A população em estudo é uma amostra não aleatória que compreende todos os indivíduos a receberem tratamento de hemodiálise, na Clínica NephroCare de Braga, constituída por 112 indivíduos. Do universo amostral (n=112), a distribuição de indivíduos apresenta uma fracção maioritariamente masculina atingindo uma percentagem de cerca de 60% (58,93%) que corresponde numericamente a 66 indivíduos. A população feminina integra 46 elementos que, em termos de percentil traduz-se em 41,07%, onde se encontra o elemento com maior longevidade em hemodiálise, com 92 anos (Quadro 1.1). Em termos de classes formadas para o agrupamento de faixas etárias da amostra, verificou-se que mais de metade dos indivíduos masculinos se encontrava com idade superior a 60 anos (60,61%) e em que metade desse valor correspondia à classe 70-79 anos com 29,79%. De notar que a faixa etária compreendida entre os 80-89 anos representou 12,12% da população total, existindo um elemento que se encontra em hemodiálise há mais de uma década, o que confirma o sucesso terapêutico deste tratamento (Quadro 1.2). No que diz respeito aos elementos do género feminino, verificou-se que a classe 70-79 anos representou 39,14%, com 18 mulheres. As restantes faixas aferiram-se por valores muito próximos entre 10,87 a 13,04, com a excepção das primeiras classes, no entanto, e em contraponto, temos aqui o elemento com maior longevidade submetida a diálise há 18 anos (Quadro 1.3).

Quadro 1.1  – Distribuição de Indivíduos e Género

Quadro 1.2 – Faixa etária masculina

Quadro 1.3 – Faixa etária feminina

Em termos comparativos, o comportamento da nossa amostra em estudo apresenta diferenças na faixa etária no que diz respeito ao género. Pela análise do Quadro 1.4 verificamos que a população masculina distribui-se mais homogeneamente pelas diferentes idades, notando-se um nítido crescendo a partir dos 30 anos que, apesar de apresentar o elemento mais novo da Clínica NephroCare de Braga, não deixa de ser uma população envelhecida. A população feminina manifestamente apresenta uma concentração na classe 70-79.

Quadro 1.4 – Faixa etária conjunta da população

Quanto ao estado civil mais de metade da amostra estudada é casada correspondendo a 62,50% (24 mulheres e 46 homens), a população solteira apresenta o valor de 14,29% com 5 mulheres e 11 homens, e cerca de 10% dos indivíduos não tem parceiro (16 mulheres e 9 homens por viuvez) e uma mulher por divórcio correspondendo 0,89% do universo total (Quadro 1.5).

Quadro 1.5 – Estado civil da população

No que diz respeito à distribuição quanto ao grau de escolaridade, a maior parcela da amostra, com 86 indivíduos, corresponde ao ensino primário e preparatório. Apenas três inquiridos concluíram uma licenciatura, existindo dois a frequentar um curso superior. Quanto à iliteracia o universo apresenta-se significativo, com cerca de 20% (Quadro1.6).

Quadro 1.6 – Grau de escolaridade

Na etiologia da Insuficiência Renal Crónica Terminal observou-se que 23,21% dos casos são de origem desconhecida, existindo diversas patologias que acarretaram a entrada em hemodiálise como a doença poliquística do rim (10,71%), a hipertensão arterial (14,29%) e a diabetes mellitus (14, 29%). A causa, clinicamente, identificada como uma das principais foi o Síndrome Nefrótico Crónico com 31,25% (Quadro 1.7a). Quanto à influência da etiologia segundo o género verificou-se, de uma forma mais premente, que a doença neoplásica, a vasculopatia necrotisante, a amiloidose (P.A.F.) e a nefrite tubolointesticial foram exclusivas ao género masculino (Quadro 1.7b). A doença lúpus foi a única causa responsável restrita ao género feminino para a entrada em hemodiálise. O carácter de hereditariedade inerente a estas patologias não se encontra na transmissão autossomática, pelo que o seu surgimento é independente do género.

Quadro 1.7a – Etiologia de IRCT

Quadro 1.7b – Etiologia de IRCT

No que diz respeito às características profissionais da nossa população em estudo verificamos que, em termos laborais, apenas um grupo reduzido de indivíduos se encontra activo, apresentando o valor de 15,18%, dos quais 2,67% são mulheres. A grande fracção da amostra, com mais de 80%, é constituída por elementos que não exercem qualquer tipo de funções profissionais, encontrando-se inactivos. Será necessário, no entanto, referir que a classificação de activo e/ou não activo é referente à presença ou ausência de actividade laboral remunerada, desempenhada no exterior ao domicílio. Deste modo, o trabalho doméstico não pertence nem se enquadra nesta terminologia (Quadro 1.8).

Quadro 1.8 – Situação Profissional

Resultados da Análise

Grande parte dos trabalhos, que tem como objecto de estudo a avaliação da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde, apresenta um carácter transversal, importante para a comparação entre as várias modalidades de tratamento (9, 10). Sabe-se, no entanto, que a qualidade de vida é objecto de variações ao longo do tempo, o que torna importante a sua avaliação através do estudo longitudinal. Efectivamente, foi possível observar pela análise da percepção da qualidade de vida relacionada com o tempo de diálise uma discrepância em termos de pontuações que se agruparam em três grandes e diferentes clusters e que foram comprovados pela regressão múltipla.

A comparação das pontuações resultantes do Sickness Impact Profile revelou que houve uma diminuição nas pontuações totais do PSIP ao longo dos primeiros anos de Hemodiálise, sendo a diferença estatisticamente significativa (p<0,001) (Quadro 1.9). Na realidade, a pontuação no primeiro ano é de 2,4 %, diminuindo nos quatro anos seguintes para valores na ordem da unidade, estes resultados foram confirmados pela regressão múltipla constituindo o primeiro cluster.

Quadro 1.9 – Evolução da QVRS em Hemodiálise

Em termos de interpretação é possível afirmar que os valores acima referidos demonstram que, apesar do impacto do tratamento de diálise no dia-a-dia do hemodialisado, os inquiridos percepcionam uma melhoria da qualidade de vida após a sua entrada em hemodiálise, mas unicamente em relação aos primeiros anos de tratamento. A partir do sexto ano verifica-se um aumento considerável das pontuações totais para valores de 5,0 % com a diferença estatisticamente significativa (p<0,001), revelando, deste modo, um decréscimo expressivo na qualidade de vida relacionada com a saúde. As razões apontadas para este fenómeno manifestaram-se directamente correlacionadas com factores psicológicos e emocionais devido a uma aparente sensação de perda de esperança (pelo longo tempo decorrido desde o seu primeiro dia em diálise) para o tão pretendido transplante, aspiração comum e transversal a todos os hemodialisados. Observa-se, na curva da análise, uma diminuição das pontuações globais com diferença estatisticamente significativa (p<0,001 e r =0,318), assumindo valores com maior referência ]1,4; 1,0] após um período muito prolongado em hemodiálise. Foi possível verificar que a presença contínua e quase diária, do hemodialisado numa Clínica de diálise, proporcionou o estreitar de relações humanas quer com os outros seus pares quer com a equipa de profissionais que garantem o seu tratamento em hemodiálise. Deste modo, as pontuações indicativas de uma melhoria da qualidade de vida reforçam a relevância da rede social formal e informal criada no contexto do universo clínico. Este tecido de suporte de relações, que estabelece uma dinâmica de estrutura de apoio, é promotor de uma percepção positiva do tratamento de hemodiálise traduzido por uma melhor qualidade de vida.

As elevadas pontuações globais com diferença estatisticamente significativa foram fundamentadas pela vertente clínica. A pontuação global mais elevada (7,6%) ao se tornar num outliner com uma reduzida correlação com as restantes variáveis independentes, à excepção de 3,1 e 2,1 com α Cronbach de 0,537 e 0, 672 (correlação significativa de p<0,05), não foi excluída por justificação clínica. Efectivamente, a pontuação global de 7,6% diz respeito a uma situação de patologia neoplásica que, para além de ter sido a causa etiológica para a entrada em hemodiálise, manifesta-se como comorbilidade impeditiva de possível transplante. Este quadro clínico ao laquear a possibilidade de transplante e, assim, aniquilar qualquer esperança de sair do tratamento de hemodiálise, expressa-se por mal-estar, ausência de liberdade e revolta com consequente reduzida qualidade de vida.

Na comparação das pontuações obtidas na dimensão física que agrega o domínio da capacidade funcional (CF) e do aspecto físico (AF), verificou-se que houve uma gradual diminuição do seu valor, registando-se a pontuação mais elevada (6,2% com p<0,001) para os hemodialisados mais jovens e a mais reduzida (1,8% com p<0,001) nos elementos seniores (Quadro 1.10). Observamos que a imagem corporal apresenta maior significância nos mais jovens, no entanto, no que diz respeito à fístula e edemas ambos os grupos etários expressaram serem categorias determinantes na diminuição da auto-estima e qualidade de vida.

Quadro 1.10 – Evolução da dimensão Física, Orgânica e Psicossocial

Relativamente à dimensão orgânica que agrega o domínio dor e estado geral de saúde (EGS), a evolução das pontuações globais mostrou-se homogénea, não se verificando uma diferença estatisticamente significativa (p>0,001) entre as várias categorias dos domínios. No entanto, foi possível verificar que a dimensão apresentou elevada influência na qualidade de vida com pontuações globais na ordem de 8%.

Quanto à  pontuação global obtida em cada uma das categorias independentes relativamente à hemodiálise, as disfunções referidas que mais afectam a qualidade de vida foram o regime hídrico com valormax de 11,3%, o regime dietético com 9,8%, o sono e repouso com 5,8%. Estas disfunções com diferenças estatisticamente significativas perduram durante todo o período de tratamento de hemodiálise sendo determinantes pela diminuição de qualidade de vida relacionada com a saúde.

A avaliação da influência do grau de perturbação dos sintomas associados a comorbilidades revelou a existência de uma associação estatisticamente significativa entre a qualidade de vida no geral e o grau de perturbação dos sintomas. Com efeito, ao analisarmos a influência de comorbilidades (Quadro 1.11) verificámos que a dor óssea e o prurido foram as mais apontadas como responsáveis pela baixa qualidade de vida relacionada com a saúde, com pontuações globais de 13,1% e 17% (p<0,001 e r =0,351) nos homens e mulheres, respectivamente. Verificámos também a existência de situações clínicas de diminuição da acuidade auditiva, em ambos os géneros, que apresentou valores de significância na qualidade de vida. Refere-se que estes casos têm-se manifestado recentemente não sendo muito conhecida a sua etiologia.

Quadro 1.11 – Influência de Comorbilidades em QVRS

Há ainda a indicar que a vertente farmacológica da hemodiálise tem vindo a responder positivamente na diminuição e, mesmo, na supressão de sintomatologia de doenças associadas, como anemia e hipertensão arterial. Com efeito, não foram observadas diferenças significativas das pontuações destas categorias independentes (p>0,05).

Resta-nos referir que no universo clínico os avanços significativos no conhecimento da área da hemodiálise, que se reflectiram também em progressos ao nível tecnológico, apresentaram-se como uma das categorias independentes mais significativas (p<0,001) tornando-se numa variável de interesse (Quadro 1.12). De uma forma unânime, todos os hemodialisados, que se encontram em programas de diálise num período de tempo superior a sete anos, indicaram a vertente tecnológica como a categoria que mais contribuiu para uma substancial melhoria de qualidade de vida relacionada com a saúde.

Quadro 1.12 – Influência vertente tecnológica em QVRS

Considerações finais

No contexto da qualidade de vida relacionada com a saúde são fundamentais e indispensáveis as percepções dos indivíduos sobre a sua própria saúde e não, meramente, as medidas clínicas tradicionais. Os instrumentos genéricos do estado de saúde e de domínio específico constituem ferramentas e medidas precisas essenciais à avaliação de qualidade de vida. Só assim é possível monitorizar e conhecer os efeitos ou resultados quer das doenças quer das terapias para, deste modo, obter na nossa prática clínica melhores cuidados.

De acordo com os resultados obtidos podemos afirmar que, de uma forma transversal, o tratamento de hemodiálise interferiu na qualidade de vida dos doentes. Na realidade, verificou-se que, apesar do impacto do tratamento de diálise no dia-a-dia do hemodialisado, os inquiridos percepcionam uma melhoria da qualidade de vida após a sua entrada em hemodiálise, mas unicamente em relação aos primeiros tempos de tratamento. As razões dos valores das pontuações globais serem na ordem de 1,4% estão relacionadas com o aspecto clínico, em que se aponta a contribuição significativa do aumento da hemoglobina (administração de epoietina), a diminuição da ureia e dos electrólitos verificadas após cada sessão de hemodiálise.

Após este período, verificamos um aumento considerável das pontuações totais para valores de 5,0 % com a diferença estatisticamente significativa (p<0,001), revelando um decréscimo expressivo na qualidade de vida relacionada com a saúde. As razões apontadas para este fenómeno estão directamente relacionadas com a dependência a uma máquina durante em vários dias por semana, com sessões com 3 a 4 horas; a dor das punções, os regimes dietético e hídrico rigorosos, a falta de sono e de repouso, entre inúmeras outras limitações impostas pelo tratamento e pela doença. Com efeito, as diferentes matrizes que operam no universo da diálise promovem a insatisfação psicoemocional do hemodialisado a vários níveis. Foi possível verificar que a percepção de uma baixa qualidade de vida era resultante da ausência de perspectivas, da falta de autonomia e independência que, indubitavelmente, conduzem à não realização de projectos e concretização de aspirações, acarretando uma baixa auto-estima. Importa sublinhar que estes aspectos já foram assinalados em outros trabalhos de investigação (11), apresentando-se como factores/variáveis concordantes.

Um dos pontos cruciais deste trabalho foi a verificação de que, além das significativas repercussões que se operam na matriz social e familiar, as estratégias e os esforços adoptados pela família, bem como a importância da solidariedade dos seus membros, evidenciam extraordinária relevância apresentando-se fundamentais para uma melhoria na qualidade de vida do hemodialisado. Também ficou confirmada a influência positiva da equipa clínica que, pelo seu desempenho, deixou de ser meramente técnica para passar a ser parte integrante das relações humanas dos dialisados. O suporte e influência positiva das relações sociais estendem-se, deste modo, à equipa multiprofissional da Clínica NephroCare de Braga, uma vez que ficou evidenciado neste trabalho que o desempenho assente no cuidar do ser humano, do seu bem-estar global e da sua dignidade, contribuiu de forma decisiva para a aceitação e melhoria de qualidade de vida em hemodiálise.

No que diz respeito à associação entre qualidade de vida e as variáveis sócio-demográficas não foi possível observar diferenças estatisticamente significativas (p>0,01) entre os diferentes grupos etários, o seu nível de escolaridade e a situação profissional. Embora se observasse uma forte correlação entre estas categorias não foi possível retirar conclusões sobre as mesmas. Em relação à capacidade funcional (CF) e ao aspecto físico (AF) verificou-se a existência de diferenças segundo o grupo etário em questão. Deste modo, observou-se que para os hemodialisados mais jovens o aspecto físico foi marcadamente o que mais influenciou a qualidade de vida. As razões vão de encontro à importância conferida à auto-imagem e ao corpo. De referir que a existência de uma fístula artério-venosa, construída cirurgicamente, a alteração da tez da pele, bem como o aparecimento de edemas generalizados fazem parte das mais significativas modificações na aparência corporal. Em contraponto, o grupo menos jovem apresentou a capacidade funcional como a mais castradora da qualidade de vida, juntamente com o domínio EGS. É necessário referir que o domínio da CF, também, mostrou ser uma influência negativa na qualidade de vida dos hemodialisados nas faixas etárias mais jovens, devido à astenia, consequência de um conjunto de disfunções orgânicas que existem devido ao empobrecimento do tecido renal e que acarretam o aparecimento de uma anemia crónica. Estas disfunções que operam a diferentes níveis vão desde a insuficiência na produção medular por “deficit” do factor eritopoiético, hemólise que acarreta a diminuição da vida média dos eritrócitos, perdas sanguíneas, quer pela própria técnica (varia entre 4 a 20 ml/sessão), quer por análise periódicas ou ainda por hemorragias (12). Consideramos relevante referir que, de uma forma transversal a todos os doentes, o transplante surge como uma forma libertadora do sofrimento imposto pela doença e pelo tratamento. Relembramos que muito embora a hemodiálise seja um tratamento que determina a diferença entre a vida e a morte é, de igual modo, um procedimento que, pelas suas exigências e limitações de estar ligado a uma máquina, impõem profundas alterações tutelando um (re)início de vida. Neste contexto foi observada a existência de um caso em que, por motivos de doença neoplásica não controlada, a possibilidade de ser receptor não pode ser equacionada e em que a qualidade de vida é muito baixa. Em termos de análise verificamos que esta variável é responsável por uma pontuação global de 7,6%, que atesta o sentimento de revolta provocado pela supressão forçada da oportunidade de transplante e que se repercute manifestamente na sua qualidade de vida. Por fim, resta-nos referir que o objectivo último do tratamento da Insuficiência Renal Crónica não só deve ser prolongar a vida do doente utilizando, se necessário, terapias de substituição da função renal, mas, também, proporcionar um maior grau de reabilitação e/ou readaptação com uma boa, se possível, óptima qualidade de vida. Para tal torna-se indispensável a introdução da avaliação de qualidade de vida como indicador positivo dos cuidados de saúde. A natureza individual da qualidade de vida deverá ser incorporada na avaliação da qualidade dos cuidados para não só dar anos à vida mas dar vida aos anos. Deste modo, compartilhamos a opinião de muitos autores de que o reconhecimento da importância da relação qualidade de vida com as variáveis da saúde relacionadas com a mesma qualidade contribui para uma melhor prestação de serviços a quem faz hemodiálise, devendo assim ser considerada na investigação, na prática clínica e na tomada de decisões.

A nossa experiência dita-nos, também, que o agir consentâneo com o diferente e o particular, partindo das abcissas da base clínica universal, contraria o aumento da morbilidade, torna desnecessária a utilização de muitos meios de diagnóstico dispendiosos e, acima de tudo, evita o desconforto e o sofrimento de quem está em hemodiálise.

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