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Empreendedorismo trinta ponto dois

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Empreendedorismo trinta ponto dois

Se alguém diante de si deixar de respirar, diz a American Heart Association que deve ligar o número de emergência e iniciar reanimação cardiopulmonar.

De uma forma muito resumida, o algoritmo do RCP diz que devemos efectuar conjuntos de 30 compressões torácicas alternadas com duas ventilações, podendo eventualmente fazer apenas compressões.

A palavra empreendedorismo tem sido usada pelos nossos governantes para nos mostrar o caminho de saída para a crise. Uma espécie de tábua de salvação. Como sabemos, um dos problemas mais graves que a profissão enfrenta é o desemprego. E nesse sentido, a Ordem dos Enfermeiros tem feito um apelo ao empreendedorismo no seio da classe. Contudo, esta linha de pensamento ignora/omite que o desemprego na profissão se deve, também, a outros factores: desequilíbrio entre oferta formativa e oferta de empregos, desinvestimento por parte do poder político em cuidados de Enfermagem, duplo emprego, crise no país e na Europa (zona Euro). Os enfermeiros recém formados talvez não sejam os mais habilitados para iniciar um projecto “a solo”, e se eu criar uma empresa de âmbito nacional (de cuidados de Enfermagem ao domicílio, por exemplo) estou a concorrer com o Serviço Nacional de Saúde. Queremos fragilizá-lo?

Se imaginarmos um jovem enfermeiro empreendedor, facilmente percebemos que um dos seus objectivos poderá ser criar algo semelhante à rede de hipermercados Continente ou bombas de gasolina da Galp. Pois bem, o SNS já tem essa rede! Não percebo porque se teima em criar algo do género a uma coisa que já existe?! Bastava que o Ministro da Saúde pegasse no SNS e lhe introduzisse as reformas necessárias (que são muitas). A não ser que Paulo Macedo esteja empenhado em enfraquecer uma rede existente para que outras floresçam…

Desde há muitos anos que os profissionais de saúde são “empreendedores” nas suas localidades, prestando pequenos serviços de saúde a familiares, vizinhos, amigos e outras pessoas.

O empreendedorismo não tem de ser obrigatoriamente uma coisa que dê milhões (a propósito, estou a aguardar ver um enfermeiro no Shark Tank da Sic), nem os empreendedores têm de aparecer nas fotografais dos jornais de braços cruzados e pose tipo Ricardo Salgado (DDT). Podemos falar num de empreendedorismo de base colectiva:
– se um enfermeiro organiza as consultas (num centro de saúde ou hospital) de forma a evitar aglomerados de utentes nas salas de espera, e aumentando a satisfação do cidadão, está a empreender;
– se arranjarmos forma de as maçãs do Pingo Doce e Continente deixarem de ter aqueles autocolantes horríveis, estamos a ser empreendedores; e não nos esqueçamos que a parte externa dos cestos das compras dá boleia à sujidade do chão das superfícies comerciais para a parte interna de outros cestos; ter em atenção, também, as pegas dos carrinhos das compras;
– nunca percebi porque é que no meu país, eu sou obrigado a levar o meu carro todos os anos à inspecção (sim, ele já não é novo), mas não há algo do género para que os cidadãos recorram regularmente ao seu Centro de Saúde;
– em tempos, o grupo HPP (CGD) era um dos maiores operadores de saúde privada em Portugal. No fundo, estávamos perante uma situação em que uma entidade pública estava presente num ramo de actividade privada. Porquê? Simples: se o mercado é livre e permite aos investidores aplicarem o seu dinheiro numa actividade rentável, porque é que um desses investidores não pode ser uma entidade pública? Basta que se respeitem as regras concorrenciais;
– o caso da saúde no trabalho também é algo que poderia ser perfeitamente assegurado por equipas formadas por entidades públicas. Se este tipo de serviços de saúde não está assegurado pelo SNS, e se as empresas precisam deste requisito para funcionarem, porque é que os centros de saúde não podem criar equipas vocacionadas para esta actividade?
– imaginemos um algoritmo (simples e resumido como o da AHA), mas relativo à alimentação, exercício físico e bem estar. Equipas dos cuidados primários nas escolas, empresas ou outras organizações, anúncios publicitários, maratonas, etc, procurando chegar ao maior número de pessoas. Abordar temas sérios e importantíssimos como a obesidade, saúde e felicidade, dando pequenas dicas para o dia a dia de todos nós. As várias Ordens das profissões de saúde unidas em torno do interesse do cidadão;
– o Decreto-Lei n.º 184/2012 obriga que determinado tipo de espaços tenha um Desfibrilhador Automático Externo. Para tal, é necessário ter o dito equipamento, e que existam pessoas treinadas para o usar. Algumas empresas perceberam há algum tempo que foi criada uma janela de oportunidade, e souberam agarrá-la. Mas será que o Ministro da Saúde não poderia elaborar um plano, em que, de uma forma mais ou menos directa, fossem as instituições de saúde, em cada localidade, a levar a cabo este tipo de formação? Atenção que nem sequer estou a defender uma postura em regime de exclusividade. Bastava que os serviços públicos fossem ao menos, mais um “player” ao dispor dos potenciais clientes. Permitam-me o à parte: não me admirava nada que um dia destes o Correio da Manhã noticiasse que o profissional de saúde “A” ou “B”, tenha ficado embaraçado diante de um DAE. Os centros de formação das instituições de saúde deviam estar mais atentos a isto (o mesmo se aplica às escolas de Enfermagem e outras). E se tiverem espírito empreendedor até podem “vender para fora” determinado tipo de cursos (SBV, SAV, PHTLS…);
– é preciso dar mais visibilidade aos contributos como os de Joana Sá, Jenny Cardoso e Natália Ribeiro; exemplos vivos de como o empreendedorismo tem uma vertente humanitária; mais uma vez, Ordens profissionais, Governo e a Sociedade em geral deviam acarinhar estes projectos;
– uma das críticas mais ferozes à “máquina” do Estado é o seu tamanho. Independentemente de outras considerações que possamos fazer, a “máquina” não anda, pelo menos o suficiente, por causa dos jogos de poder internos. Isto é válido para as instituições de saúde, mas para muitos outros organismos públicos. Uma boa forma de contrariar essa tendência, é a democratização de processos, o que, aliado a compromissos em nome do interesse nacional, reduziria significativamente os custos de operação. Isto é ou não empreendedorismo?
– e será que não há nenhum finalista de um curso de informática disposto a sentar-se à mesa com responsáveis da OE, dos Sindicatos, do Ministério da Saúde (ou ACSS) de forma a criar uma APP que dê uma ajuda na selecção/hierarquização de enfermeiros nos concursos para as instituições de saúde?
– uma das farmácias situada ao lado de um serviço de urgência (hospitalar), está encerrada há longos meses. Um Governo tão empreendedor não tem poder de influência para a reabrir? Quiçá, pô-la a “render” para a instituição de saúde em que se insere?

Sobre esta temática é incontornável a mensagem do Bastonário da OE, em Junho de 2012: “Têm surgido exemplos desses também em Portugal. Um deles em Miranda do Douro de duas jovens enfermeiras que resolveram transformar uma situação de desemprego numa oportunidade, trabalhando voluntariamente a troco de casa e alimentação. Não julgo que essa seja uma situação que se deva prolongar indefinidamente, mas reconheço o espírito de abnegação e empreendedorismo destas profissionais e que gostaria de destacar. Tenho esperança que esta situação precária venha a dar lugar a uma situação condigna.”
(http://www.ordemenfermeiros.pt/comunicacao/Paginas/MensagemBastEnfermeirosDiaspora10junho2012.aspx)

Era bom que se olhasse para as condições em que trabalham os enfermeiros nas empresas surgidas nos últimos anos, ao abrigo do empreendedorismo. Estarão a ser devidamente remunerados tendo em conta o seu trabalho?

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