“Ministro defende que a exaustão dos enfermeiros se deve ao trabalho no público e no privado”. Este foi um dos títulos da imprensa de há duas semanas que gerou muita indignação entre a nossa profissão, traduzida, entre outras coisas, por milhares de comentários nas redes sociais.
O que é isso de ter “duplo emprego”? É uma designação que se aplica a todos quantos, além do seu emprego num hospital, centro de saúde, lar, clínica ou outra instituição de cuidados/serviços de saúde, exerce a sua actividade numa outra instituição (ou na mesma), resultando daí um horário semanal superior a 35 ou 40 horas (há colegas que exercem 50, 60, 80…).
Coloca-se então uma (simples) pergunta: faz sentido, hoje, o duplo emprego?
Eu acho que não!
É muito estranho que Paulo Macedo venha falar desta forma acerca do duplo emprego, quando este fenómeno decorre da gestão do seu ministério. Se o Governo acha que o duplo emprego é uma das causas para o desgaste dos enfermeiros, e se isso é um problema, então seria facílimo contrariar essa realidade: há milhares de jovens no desemprego à espera de uma oportunidade de trabalho.
Também estranho que da parte da profissão não haja uma abordagem mais objectiva sobre esta realidade. Ouvi um representante da OE dizer que o duplo emprego tem hoje uma prevalência reduzida entre os enfermeiros. Se a memória me não falha, num dos comentários no Facebook, um dirigente sindical, apontava para os 5%. Admitamos que em 2014, em Portugal, há 2000 enfermeiros (creio que é um valor subestimado) que além do seu horário normal de trabalho, faz mais de 20 horas (em média) por semana noutra instituição. Se tivéssemos a coragem de reduzir ao mínimo o duplo emprego (atenção: não estou a defender que se decrete o fim desta prática), conseguiríamos criar 1000 postos de trabalho. Para um país (e para uma profissão) onde o desemprego é uma tragédia, acho que não era nada mau. Por vezes oiço alguns comentários entre colegas, e sinto que há variáveis que não são tidas em conta: “impedir” que 1000 jovens enfermeiros portugueses emigrem, é dar um contributo muito significativo à economia portuguesa e à renovação da população. Temos um problema GRAVÍSSIMO de baixa de natalidade entre mãos, que parece querermos ignorar…
“Nós só tempos duplo emprego porque ganhamos mal”.
Alto lá!
Então os enfermeiros que fazem duplo emprego, só o fazem por causa do dinheiro? Pensei que era por gostarem muito da sua actividade, por poderem abraçar dois projectos aliciantes, por quererem conhecer a realidade de instituições com filosofias distintas, por terem uma “energia” acima da média… Será que temos noção da mensagem que estamos a transmitir para a sociedade? Se em 2015 Passos Coelho diminuir ainda mais o nosso salário, a solução para os enfermeiros será arranjar mais um part-time para contrariar essa perda do poder de compra?!
E reparem: há milhares de enfermeiros em Portugal que têm apenas um emprego. Como conseguirão eles sobreviver? Dizia há dias uma colega, que o duplo emprego serviu-lhe para financiar o investimento na formação pós graduada. Mas não há centenas de colegas que só têm um emprego e que no entanto, investem na sua formação?
Ganhamos mal? SIM, SIM, SIM!
Mas o caminho para contrariar essa tendência não me parece que deva ser o do duplo emprego. Bem sei que há colegas que se perderem, amanhã, o duplo emprego, terão imensas dificuldades para fazer face ao seu dia a dia, mas isso significa que dentro de portas, os nossos responsáveis há muito deveriam ter iniciado uma “pedagogia” sobre esta matéria (2010?). Falo com o à vontade de quem já teve dois empregos (40 + 40 horas semanais) e já na altura percebia que essa situação não era razoável. Os enfermeiros esquecem muitas vezes a sua qualidade de vida (Burnout!) e esquecem a qualidade do seu desempenho. Não estou a insinuar que os colegas que fazem duplo emprego colocam em risco a vida dos doentes, mas não tenho a menor dúvida que um trabalhador que veste a camisola de uma só instituição rende muito mais e melhor do que se “vestir” duas ou três camisolas.
Um dos números que se tem ouvido na comunicação social é o de que faltam em Portugal 25 mil enfermeiros. Independentemente de esse número ser fiável ou não, o que é que nós queremos: 25 mil postos de trabalho efectivos, ou 15 mil efectivos e os restantes 10 mil em regime de duplo emprego (duplo e triplo emprego)?! Admitamos que eu tenho grandes amigos no Conselho de Administração de um hospital, de uma clínica ou de um lar: se eles me facilitarem as escalas, de modo a eu poder acumular um horário completo no hospital, outro horário na clínica e meio horário no lar de idosos, isto é razoável?!
Os horários de 42 horas, os valores pagos nos SIGIC, nas VMER e Heli´s do INEM, os incentivos para Transplantes, além de não fazerem sentido nos dias de hoje, em virtude de haver enfermeiros para ocupar esses lugares a tempo inteiro, representam uma claríssima má gestão dos dinheiros públicos.
Como é que se consegue um duplo emprego em Portugal. É por mérito? Se na próxima semana, um enfermeiro quiser aumentar os seus rendimentos mensais, que portas abertas irá ele encontrar? Estamos a garantir igualdade de oportunidades? Mesmo que o ordenado de um enfermeiro recém licenciado fosse de 2 mil euros, continuaria a haver pessoas ambiciosas que não se importariam de trabalhar em mais que um lugar.
Se eu fizer duplo emprego conseguirei cumprir religiosamente o meu horário, terei disponibilidade para mim e para a minha família, para acompanhar a realidade do meu país e da minha profissão, terei a frontalidade necessária para expressar o meu ponto de vista sobre algumas vicissitudes do meu dia-a-dia enquanto enfermeiro?
Vale o que vale o meu ponto de vista, mas estou convencido que muitos casos de duplo emprego passam “despercebidos” no dia-a-dia dos serviços porque nem sempre a exigência nesses serviços é a mais elevada. O caso paradigmático da nossa sociedade onde se percebe isso é na Assembleia da República: os deputados deviam dedicar-se apenas à sua função de representantes dos cidadãos, mas o “duplo emprego” permite-lhes que tenham ligações, por exemplo, a empresas de advogados que intermedeiam relações entre o Estado e o Sector Privado (como já se começou a perceber, uma parte significativa da história do Grupo Espírito Santo tem a ver com isto…)…
Muitos casos de duplo emprego que conheço existem porque, ou o trabalhador já exerce há vários anos (desde o tempo em que não havia desemprego na profissão) ou porque dá jeito à entidade patronal ter dois part-times em vez de um trabalhador em horário completo (o que evidencia uma clara desvalorização do valor do trabalho!).
Aceitar o duplo emprego de forma tranquila nos dias de hoje, sobretudo em países em dificuldade como o nosso, representa uma hipocrisia da sociedade e uma inabilidade de fazer frente a um dos maiores flagelos entre nós. Que modelo social é este que dá dois pães a um cidadão, quando ao lado está alguém sem nada para comer. Alguns dizem-me que são as leis de mercado a funcionar…
Se, como tantas vezes ouvimos dizer em eventos onde se reúnem profissionais de saúde, uma das nossas preocupações base é o respeito pela dignidade do outro, uma alteração de paradigma a este nível deveria ocorrer mesmo que os beneficiados fossem uma, duas ou três pessoas. Como se vê, a mudança pode melhorar a vida de milhares de pessoas! Imaginem os enfermeiros a marcar a diferença neste domínio, seja através da Ordem ou dos Sindicatos. Talvez outros nos dessem ouvidos e seguissem o mesmo exemplo.