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Cuidar de uma Pessoa com Úlcera Venosa

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Revista Sinais Vitais

Trata-se de um Estudo Caso, no qual foi aplicado uma matriz moduladora da protease associada a uma terapia compressiva no tratamento de uma úlcera venosa.

Autores:

António Morgado Jerónimo*

Fabíola Maria de Almeida Figueiredo**

Pedro Ricardo Coelho Gonçalves**

* Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Reabilitação, no Serviço de Neurologia 3 dos Hospitais da Universidade de Coimbra

** Enfermeiros de Nível 1, no Serviço de Neurocirurgia 1 dos Hospitais da Universidade de Coimbra

Palavras-Chave: Úlcera Venosa, Insuficiência Venosa Crónica, Colagénio, Cicatrização, Compressão

Resumo:

O presente artigo pretende realçar a importância da sistematização (observar, planear, avaliar) dos Cuidados de Enfermagem a uma pessoa com úlcera venosa. Trata-se de um Estudo Caso, no qual foi aplicado uma matriz moduladora da protease associada a uma terapia compressiva no tratamento de uma úlcera venosa.

A insuficiência venosa crónica é a principal causa de úlcera da perna. Esta resulta do desvio da pressão venosa profunda, gerada por contracções musculares em redor das veias, para as veias superficiais que não estão preparadas para resistir a pressões elevadas. Essas veias dilatam-se (veias varicosas) e ocorre acumulação de sangue, resultando em estase venosa na pele, a qual se apresenta como uma área descorada, frequentemente eczematosa, em geral na região de veias varicosas salientes. Eventualmente, a drenagem venosa da pele torna-se muito insatisfatória para sustentar o metabolismo da epiderme, que morre e descama deixando uma úlcera venosa. Esta situação pode acontecer espontaneamente ou ser acelerada por um traumatismo relativamente pequeno (UNDERWOOD, 1995). O sistema linfático também pode estar afectado. Os vasos linfáticos são responsáveis por remover dos tecidos as proteínas, gorduras, células e fluído excessivo. DEALEY (2001) ao citar Ryan refere que os vasos linfáticos superficiais da derme ao desaparecerem, provocam uma acumulação de substâncias tóxicas nos tecidos, a qual pode causar fibrose e edemas acentuados.

A prevalência das úlceras venosas aumenta com a idade, sendo também mais comum nas mulheres do que nos homens (JOHNSON&JOHNSON, 2001).

Este tipo de úlcera, normalmente, localiza-se na região do tornozelo.

As úlceras venosas podem-se classificar em:

      Classe 0 – assintomática;

      Classe 1 – edema ligeiro a moderado dos tornozelos, dilatação generalizada dos capilares;

      Classe 2 – edema moderado, aparecimento de manchas, fibrose na zona do maléolo;

      Classe 3 – dor crónica na zona distal da perna, ulcerações, edema grave;

      Classe 4 – pigmentação, eczema, lipodermatosclerose;

      Classe 5 – alterações da pele com úlcera cicatrizada;

      Classe 6 – alterações da pele com úlcera activa (idem, 2001).

A avaliação global do cliente é essencial, porque muitos factores retardam a cicatrização das feridas crónicas, tais como: estado nutricional, mobilidade, sono, tabagismo, anemia, diabetes, dor, efeitos psicológicos negativos provocados pela úlcera venosa e outras doenças associadas (trombose venosa profunda, doença cardiovascular e reumatóide).

A avaliação médica é necessária para assegurar um diagnóstico diferencial correcto, entre úlceras venosas e arteriais, dado que o tratamento de uma úlcera venosa é diferente do tratamento de uma úlcera arterial, nomeadamente no que se refere à terapêutica compressiva. O diagnóstico diferencial, é efectuado através de um exame simples e que se designa por Ultrasonografia Doppler (DEALEY, 2001).

Este artigo traduz o resumo de um Estudo Caso sobre o tratamento de uma úlcera venosa, onde foi utilizado um apósito rico em colagénio, (PROMOGRAN* – nome comercial), que funciona como uma matriz moduladora da protease, no leito da ferida, diminuindo o processo inflamatório e ajudando na limpeza enzimática da mesma. Trata-se de um processo bioquímico complexo que tem como finalidade promover a formação de tecido de granulação e uma mais rápida cicatrização da úlcera.

Numa primeira parte tecer-se-ão algumas considerações sobre a matriz moduladora da protease, para de seguida se apresentar o Estudo Caso.

Matriz moduladora da protease

Trata-se de uma terapia interactiva e de uso tópico, sendo um composto estéril e liofilizado de celulose regenerada oxidada (45%) e colagénio (55%). Tem como funções modular e reequilibrar o ambiente da ferida crónica através da combinação de:

– Ligação e inactivação das proteases (enzimas que estão presentes em todos os exsudados de feridas e que desempenham um papel importante na regulação do equilíbrio entre a síntese e a degradação dos tecidos no processo inflamatório);

– Ligação e protecção dos factores de crescimento naturais contra a degradação pelo excesso destas proteases (JOHNSON&JOHNSON, 2001).

Esta matriz, também, promove a angiogénese (formação de novos vasos capilares), suportando o desenvolvimento de um novo tecido conjuntivo e apresenta propriedades hemostáticas. Está indicada no controlo de todas as feridas crónicas sem tecido necrótico e sinais de infecção, podendo ser utilizada sob uma terapia de compressão.

Estudo Caso

O presente Estudo Caso iniciado a 28 de Março de 2004, incide num indivíduo do sexo feminino, 67 anos, o qual apresenta artrite reumatóide desde os 24 anos e por isso utiliza corticoterapia diária. Os resultados bioquímicos e hematológicos da análise ao sangue encontram-se dentro dos valores considerados normais. Foi submetida a cirurgia por fractura do colo do fémur, em Março de 2004, deambulando com a ajuda de canadianas.

Este indivíduo apresentava uma Úlcera Venosa de Classe 6 (confirmada pelo Cirurgião Vascular), no Membro Inferior Direito, resultante de insuficiência venosa crónica, com 8 meses de evolução (trata-se portanto de uma ferida crónica). O indivíduo desconhece o valor do Índice de Pressão Tornozelo – Braço (IPTB).

Segundo informação do próprio, aquando do diagnóstico da úlcera venosa, o tratamento inicial foi a aplicação de pensos hidrocolóides. Como não apresentava melhorias, foi efectuada uma nova avaliação médica e submetida a um tratamento por radiação com laser. Terá havido um retrocesso no processo cicatricial, segundo a doente.

Da observação da ferida a 28 de Março de 2004 (Fig. 1), verificou-se que a área mais distal da perna se encontrava numa fase de granulação, os bordos superior e antero-lateral externos numa fase inflamatória, com presença de exsudado moderado e os bordos externos à úlcera apresentavam uma demarcada área de tecido rosado que corresponde à área radiada com laser (nesta área a pele encontrava-se muito fragilizada). A pessoa não apresentava o membro inferior edemaciado, contudo apresentava dor ao toque e a ferida não tinha odor. No primeiro dia a ferida foi medida, tendo 5,5 cm de comprimento (Fig. 2) e 3 cm de largura (Fig.3). É importante medir e fotografar periodicamente a ferida, com o objectivo de se fazer uma correcta avaliação da evolução da ferida e da eficácia do tratamento.

Figura 1  – Úlcera Venosa de 28 de Março de 2004

Figura 2 – Medição da Úlcera Venosa (comprimento) a 28 de Março

Figura 3 – Medição da Úlcera Venosa (largura) a 28 de Março

Esta ferida reunia as condições ideais para a aplicação da matriz moduladora da protease.

Existem três aspectos importantes no tratamento das úlceras venosas: melhorar a drenagem da perna (exercício, compressão e elevação), cuidar da pele e usar os produtos apropriados para a ferida. Nenhum destes aspectos isoladamente será realmente eficaz sem os outros (DEALEY, 2001).

A matriz moduladora da protease (Fig. 4) foi aplicada de acordo com as instruções de aplicação. Numa primeira fase a ferida foi lavada com NaCl 0,9%, de forma suave para não provocar hemorragia; de seguida foi aplicada a matriz (previamente humedecida com NaCl 0,9%) em toda a extensão da ferida. Este produto tem propriedades elásticas após estar humedecido, pelo que é possível moldar a matriz a toda a extensão da ferida. Após a colocação da matriz, aplicou-se creme hidratante na área envolvente à ferida (hidratar e proteger a pele circundante), colocou-se um penso secundário, uma espuma hidropolímera (mantém o ambiente húmido favorável para a cicatrização da ferida), aplicando-se de seguida uma ligadura elástica compressiva de curta tracção, tendo o cuidado de aconselhar a doente a efectuar repouso no leito, no mínimo uma hora por dia, com o membro inferior elevado. Quanto à aplicação de uma ligadura elástica compressiva há que realçar o facto de haver algum cuidado na sua aplicação, dado que a pressão exercida não deve exceder os 35 mmHg, já que pressões mais elevadas provocam diminuição da irrigação arterial tecidular, estase venosa com agravamento da úlcera e de toda a área envolvente. A aplicação da ligadura é em espiral, sendo que numa fase inicial deve-se aplicar pouca pressão e só a partir do tornozelo aumentar a pressão.

Figura 4 – Aplicação da matriz moduladora da protease

Os pensos à úlcera venosa foram realizados de 48/48 horas e 72/72 horas de acordo com a quantidade de exsudato: exsudativa – 48/48 horas e pouco exsudativa – 72/72 horas.

No dia 3 de Abril (Fig. 5) observou-se a transformação da matriz num gel (celulose regenerada oxidada) que é biodegradável e absorvido ao longo do tempo, mantendo uma humidade relativa (óptima para a cicatrização) entre esta e o leito da ferida. Não apresentava sinais de agravamento ou alergia na área circundante à úlcera. Foi novamente realizado o penso, como descrito anteriormente, tendo o cuidado de não se retirarem os resíduos anteriores da matriz. Esta foi sendo colocada por camadas ao longo dos vários pensos realizados, “como que se ia reconstruindo a pele camada a camada.”

Figura 5 – Úlcera Venosa de 3 de Abril

Após nove dias foram realizadas novas medições: 4,5 cm de comprimento e 2,5 cm de largura. Houve uma diminuição do tamanho da ferida: 1 cm no comprimento e 0,5 cm na largura.

A partir do dia 10 de Abril (Fig. 6) começou-se a observar a formação de um tecido de granulação mais exuberante na parte distal e no bordo mais interno da ferida.

Figura 6 – Úlcera Venosa de 10 de Abril

Da observação de 29 de Abril (Fig. 7), continuou-se a assistir a uma evolução favorável da ferida. No entanto, continuou a formar-se um tecido de granulação exuberante, principalmente na sua parte mais distal. Também se observou a formação de novos vasos. Neste momento, colocava-se a seguinte questão: Colocar ou não um corticosteróide tópico para abrandar o crescimento deste tecido de granulação? Optou-se por continuar o É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. tratamento, sem aplicar o corticosteróide.

Figura 7 – Úlcera Venosa de 29 de Abril

A 13 de Maio (Fig. 8) verificou-se uma diminuição do tecido de granulação, uma angiogénese bastante acentuada, com o aparecimento de pequenos focos de hemorragia naturais e controlados pela própria matriz. Possivelmente, estes focos hemorrágicos foram desencadeados pela própria tensão periférica capilar, provocada pela formação dos novos vasos sanguíneos e consequente auto-destruição.

Figura 8 – Úlcera Venosa de 13 de Maio

A 25 de Maio (Fig. 9) a ferida apresentava tecido de granulação recoberto com uma placa hemostática, resultando deste processo de autodestruição do tecido de granulação, uma diminuição e horizontalidade da ferida. Realça-se a propriedade hemostática da matriz moduladora da protease (ela controlou a hemorragia).

Figura 9 – Úlcera Venosa de 25 de Maio

A 1 de Junho (Fig. 10) observou-se uma evidente re-epitelização, tendo sido aplicada gaze gorda na área envolvente à ferida (com a função de protecção).

Figura 10 – Úlcera Venosa de 1 de Junho

A 4 de Junho (Fig. 11) verificou-se uma completa cicatrização da úlcera. A úlcera venosa ficou cicatrizada em 10 semanas. Relembramos que foi uma cicatrização por segunda intenção, visto tratar-se de uma ferida crónica, na qual os bordos da ferida não podiam ser suturados.

Figura 11 – Úlcera Venosa de 4 de Junho

Continuou-se a aplicar o creme hidratante, visto que a pele se encontrava muito frágil.

Por último e segundo a nossa opinião, pretendemos realçar alguns factores que pensamos terem sido primordiais para o êxito deste Estudo Caso:

  • O planeamento sistemático dos cuidados – É muito importante observar, planear e avaliar sistematicamente a ferida. Os resultados não surgem de um dia para o outro, pelo que é necessário tempo para compreender e avaliar melhor as diversas fases do processo cicatricial;
  • Necessidade de uniformizar os procedimentos no tratamento de úlceras venosas;
  • É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. O compromisso de um acompanhamento sistemático ao doente e família durante o processo do cuidar;
  • O uso da matriz moduladora da protease;
  • É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. O uso de terapia compressiva (Fig.12) – contudo, relembro, ter cuidado com a pressão exercida;
  • O repouso no leito com o membro inferior elevado, no mínimo uma hora por dia;
  • É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. O uso de material de protecção nos cuidados de higiene (evitar a humidade) (Fig. 13);
  • É possível que seu navegador não suporte a exibição desta imagem. A comunicação eficaz, entre a pessoa, necessitada de cuidados  e os profissionais de  saúde que acompanharam todo este processo.

Figura 12 – Terapia compressiva

Figura 13 – Material de protecção usado nos cuidados de higiene

Em jeito de conclusão, o conjunto de todos estes factores foi eficaz na cicatrização da úlcera venosa, o que trouxe satisfação para o cliente e para os profissionais de saúde.

Referências Bibliográficas:

  • JOHNSON & JOHNSON, Lda – PROMOGRAN – Monografia do Produto. 2001;

  • DEALEY, Carol – Cuidando de feridas – Um guia para as enfermeiras. São Paulo: Atheneu Editora. 2001, 2.ª Edição. ISBN: 85-7454-070-6.

  • UNDERWOOD, J. C. E. – Patologia – Geral e Especial. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A. 1995. ISBN: 85-277-0299-1.

  • JORGE, Sílvia A.; DANTAS, Sónia Regina P.E. – Abordagem Multiprofissional do Tratamento de Feridas, São Paulo: Editora Atheneu. 2004. ISBN 85-7379-575-1.