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Comunicação de Más Notícias e Gestão do Luto

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Comunicação de Más Notícias e Gestão do Luto

Qualquer que seja a situação, o carácter de uma notícia – bom ou mau – está sempre relacionado com a interpretação que presumimos que aquele a quem a damos lhe poderá atribuir, presunção que se baseia  no conhecimento que temos do outro, dos efeitos que a notícia provocará na sua vida ou no seu sentir, mas também do que pensamos que aconteceria connosco se a mesma notícia nos fosse dada.

Autor: Maria Aurora Gonçalves Pereira
Editora: Formasau
Ano de edição: 2008

Nota Biográfica

Maria Aurora Gonçalves Pereira, nasceu em Ponte do Lima a 5 de Janeiro de 1959.

Terminou o curso de enfermagem em 1980, na Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo. È licenciada em Enfermagem Medico-Cirúrgica pela Escola Superior de Enfermagem Cidade do Porto, Mestre em Ciências de Enfermagem pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e Doutora em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Exerceu a sua actividade profissional na área dos cuidados diferenciados no Hospital de Viana do Castelo e no Instituto Português de Oncologia do Porto.

Membro do Centro de Investigação e Intervenção Educativa (CIIE), núcleo de Educação, Currículo, Formação e Identidades (ECFI) FPCE-UP.

É professora coordenadora da Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo onde exerce funções desde 1989.

Prefácio

Embora não seja ainda muito comum a reflexão sobre o acto de noticiar na interacção humana quotidiana (para além dos chamados órgãos de comunicação social), é um facto que se trata de um domínio de estudo que se reveste da maior importância, não só por vivermos na era da informação – que, em certo sentido, é sempre trocar notícias -, mas também porque a análise desse acto nos permite ver melhor grande parte dos processos envolvidos na comunicação considerando a iniciativa daquele que dá a notícia e, portanto, permitindo aprofundar as relações existentes entre os modos de comunicar a notícia e os efeitos assim provocados.

O facto de a interacção social – o que se passa entre duas pessoas que comunicam e que não coincide com o que um e/ou outro comunica exactamente – ser o “lugar” da comunicação, não quer dizer que os actores estejam dispensados de iniciativas interaccionais de modo a provocarem no outro o efeito que desejam. Antes pelo contrário, através do conhecimento do carácter interaccional da comunicação, visa-se promover essa tomada de iniciativa de forma competente, controlando as reacções pretendidas.

Quando se fala em terceirização e do seu impacto na mudança social, do trabalho e da formação, frisando-se aliás a importância assumida pelos processos de comunicação e relação com os “clientes”, é desta competência comunicativa que se fala.

A emergência da comunicação de más notícias em saúde enquanto problema a estudar e aprofundar integra-se nesta mudança mais lata, mas também num movimento próprio do campo da saúde que há já algumas décadas se aproxima progressivamente da comunicação e relação humana como saber e afazer inerente às profissões que lhe são mais específicas, respondendo a novas concepções e compreensões do que está implicado na saúde e na doença, e também a orientações éticas e políticas que elegem a dignidade humana e os direitos da pessoa, enquanto tal, como princípios norteadores das práticas e da construção do conhecimento profissional e científico.

Este livro, “Comunicação de más notícias em saúde e gestão do luto”, da autoria de Aurora Pereira, integra-se nesse movimento, abordando de frente um dos mais difíceis problemas que se colocam aos profissionais da saúde e, por isso, um importante analisador das principais dimensões em causa nos processos de comunicação e de relação humana nesse domínio.

Ocupando um lugar ainda por preencher adequadamente na investigação e publicação científicas portuguesas sobre o assunto, este livro descreve os sistemas de interacção que subjazem à comunicação de más notícias e aos processos de gestão do luto, através dos resultados de um estudo etnográfico que teve por foco o percurso hospitalar de catorze mulheres com cancro da mama. Fornece-nos, assim, uma visão de como se organiza a comunicação quotidiana em contexto hospitalar, dos seus pontos fortes e dos seus pontos fracos, das insistências, resistências e desistências dos profissionais e das esperanças e desesperanças das utentes e familiares, visão em que se pressentem o estado dos cuidados de saúde em Portugal, a qualidade dos profissionais que temos e as condições de vida – social e emocional – dos homens e das mulheres portuguesas. A partir da convivência avisada com esse mundo real, da convocação dos conhecimentos disponíveis a propósito na comunidade científica, do contacto com práticas comunicacionais e modos de organização de hospitais de referência a nível internacional e das sugestões dos participantes no estudo, a autora faz também recomendações claras relativamente às vias para a melhoria da situação.

O livro organiza-se em duas partes. A primeira diz respeito à definição da problemática em estudo e sua fundamentação teórica. Se na fundamentação teórica se convocam estudos e reflexões relativas à comunicação de más notícias como competência profissional e aos processos de gestão do luto, que permitem situar e fundamentar teoricamente o problema e os resultados, importa destacar que a definição do problema se constitui, ela própria, num trabalho de investigação em que se indagou sobre as percepções de má notícia em saúde, junto de pessoas comuns, de profissionais da saúde e de estudantes de enfermagem. Constituindo a segunda parte do livro, a delineação, a fundamentação e a apresentação do estudo de investigação realizado – ao nível da recolha de dados, da sua análise e da apresentação de resultados – fazem deste  livro uma leitura obrigatória, pelo que conclui e recomenda, mas também pelo modo como explicita e demonstra o uso dos critérios de rigor inerentes à metodologia utilizada nos seus diversos passos – fundamentação, recolha e análise dos dados e apresentação dos resultados. Os discursos dos profissionais e das utentes que acompanham as descrições qualitativas dos resultados, de forma concordante com a natureza da investigação fazem com que o leitor não possa deixar de imergir na ambiência emocional que atravessa a comunicação de más notícias e os processos de gestão do luto, apreendendo simultaneamente as suas configurações cognitiva e emocional.

Embora realizado sob o olhar da enfermagem, dadas as características da investigação realizada, este livro diz respeito a todos os profissionais que, em contexto hospitalar se relacionam, em diversos momentos mas de forma quase constante, com os seus utentes, segundo regras organizacionais prévias, mas também de acordo com a sua sensibilidade, a sua vivência, a sua formação, a sua capacidade de integrar o sofrimento e a morte na vida.

Qualquer que seja a situação, o carácter de uma notícia – bom ou mau – está sempre relacionado com a interpretação que presumimos que aquele a quem a damos lhe poderá atribuir, presunção que se baseia  no conhecimento que temos do outro, dos efeitos que a notícia provocará na sua vida ou no seu sentir, mas também do que pensamos que aconteceria connosco se a mesma notícia nos fosse dada. De acordo com essas interpretações (ou metapercepções) organizamos os nossos comportamentos comunicativos de modo a controlar a reacção (o sofrimento) do outro, mas também a nossa (o nosso). Entretanto, a comunicação não se faz num vazio cultural nem é independente dos contextos. No que pensamos que podemos fazer estão presentes fortes heranças culturais, padrões persistentes e sedimentados, e também projectos, intenções e vontades de transformação, também elas com enraizamento cultural. Por seu turno, o que efectivamente podemos fazer depende das nossas intenções, mas também da organização das práticas e das suas justificações na organização, que funciona como amplificadora ou inibidora dessas intenções ou vontades.

A relação entre a comunicação de uma má notícia e os processos de luto é uma característica que define o carácter dramático da notícia, pois toda a má notícia está associada a percepções e sentimentos de perda, qualquer que seja o seu tipo. Por essa razão, como no livro se defende teoricamente e se constata empiricamente, de forma concordante com outros autores e estudos, a comunicação de más notícias refere-se a um processo e não a um momento, embora nesse processo todos os momentos sejam importantes.

Das inúmeras mensagens do livro – que só a sua leitura miúda e atenta permitirá atingir – parece-me importante destacar três: o desenho da intervenção diferencial dos diferentes profissionais de saúde ao longo do percurso hospitalar de mulheres com cancro da mama; a identificação, por um lado, das categorias comportamentais e comunicacionais mais presentes nesse percurso e, por outro, dos processos de gestão do luto nele mais frequentes; e a relação existente entre o padrão comunicacional subjacente à estrutura organizacional que acolhe as utentes e as defesas individuais dos próprios profissionais.

Se a primeira destas mensagens permite identificar que profissionais estão mais presentes em cada etapa do percurso e do processo de luto (os médicos no início e no fim e os enfermeiros durante o processo) – permitindo relacioná-las com intervenções e profissionais específicos e, portanto, clarificar papéis particulares, mas também as suas necessárias inter-relações -, a segunda sistematiza os comportamentos comunicacionais usados e os processos de luto. O sistema categorial emergente da análise é, ele próprio, a exposição da rede e do património comunicacional em que se embebe o percurso das utentes e da gama emocional que acompanhou os seus processos de luto. Na descrição dá-se conteúdo concreto a essa rede e a esse património, indicam-se os seus pontos fortes – o que se faz bem – e os seus pontos fracos – de que se destaca a conjugação de um excesso de informações e informantes com uma informação quase sempre incompleta e evasiva.

Com efeito, um dos principais contributos deste trabalho para informar as intervenções em saúde em situações de perda maior, reside no modo como evidencia a articulação existente entre a organização hospitalar (ou outros espaços de atendimento) e os medos mais fundos dos próprios profissionais, levando-nos a poder falar de uma organização defensiva, mais estruturada em função das necessidades de sobrevivência psicológica dos que nela trabalham que em função das necessidades daqueles que pretende servir.

O facto não é espantoso. Como fica bem claro no estudo prévio apresentado no início do livro, uma má notícia em saúde refere-se à morte ou a uma doença fatal, mais concretamente ao cancro. Num caso ou noutro, é a morte que se faz presente. E o medo da morte, como dizia Alfred Schutz, é sempre o medo da nossa própria morte. Por isso, conviver com a morte ou o seu prenúncio (ainda que longínqua e cheia de esperança lúcida de vida) é estar perante o nosso medo maior. Independentemente das tonalidades com que este medo se possa apresentar, é inegável que, para com ele podermos conviver, necessitamos de competências de elevada exigência, difíceis de fundar, construir, desenvolver e desempenhar de forma sustentada, porque associadas ao próprio desenvolvimento humano no que ele tem de mais humano.

Se as transformações sociais normalmente designadas pelo termo de modernidade tardia permitem abrir um espaço de reflexão sobre estas práticas enquanto práticas profissionais, antes nem sequer enunciado, é também verdade que essas mesmas transformações, na sua via mais instrumental e estratégica, convidam à fuga, à evasão e à alienação. O vislumbre da plenitude do sujeito acompanha-se, em igual medida, da sua anulação. Se esta situação paradoxal é o quadro problemático por relação com o qual todos os esforços de formação dos profissionais da relação devem ser enunciados, repensados e organizados – entrelaçando componentes relacionais, desenvolvimentais e técnicas no saber profissional que, em uso, é um só -, é um facto que, no campo da saúde, o desafio é exponencial. Os apontamentos que neste livro se fazem a respeito da formação dos profissionais são, por isso, também, um dos seus importantes contributos.

Para finalizar, e enquanto orientadora do trabalho que agora se publica, não posso deixar de destacar – porque menos visíveis na leitura – as capacidades técnicas, relacionais e pessoais da autora enquanto investigadora, a braços com uma metodologia e um problema de investigação tão complexos, sensíveis e exigentes. Perante esta difícil tarefa, a autora adoptou sempre uma postura, simultaneamente serena e determinada, aberta ao novo e informada, intelectualmente rigorosa e afectivamente compadecida. Nunca me esquecerei daquelas sessões de trabalho em que à perseguição dos critérios de rigor científico e da compreensão das problemáticas tão naturalmente se juntavam as nossas lágrimas.

Amélia Lopes