Porém, as coisas não são assim. Há aspetos de ambos os códigos – profissionais e das organizações – que não estão alinhados pelos mesmos pressupostos, já que vivemos num tempo em que se procura incutir uma certa moralidade assente no “politicamente correto”, como ilustra a passagem que transcrevo da proposta de modelo do Governoque referi:
Vem já de 2011 a criação do Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar que, no seu Relatório Final apresentou um conjunto de medidas tendentes a introduzir melhorias ao nível da governação e desempenho dos profissionais ao serviço dos hospitais e a reforçar o protagonismo e o dever de informação aos cidadãos, sendo uma delas a aprovação de um Código de Ética dos Hospitais EPE que institui a obrigatoriedade de códigos de ética em todas as instituições do SNS e inclui uma proposta do modelo a seguir.
Não posso deixar de refletir sobre este assunto. Diz-me respeito como enfermeira e como cidadã.
Os códigos de ética das profissões e das organizações terão, à partida, uma base comum na medida em que se devem fundamentar nos princípios éticos e valores aceites na nossa civilização. Estando este pressuposto respeitado, não existe razão para nos preocuparmos, enquanto enfermeiros, porque vimos assim reforçada a base ética que nos permite exercer a nossa atividade profissional com vista à tão ambicionada excelência dos cuidados e, ao mesmo tempo, como cidadão ficaremos ainda mais tranquilos sabendo que para além dos códigos que regulam as profissões, também as instituições nos garantem códigos adicionais em defesa dos nossos interesses.
Porém, as coisas não são assim. Há aspetos de ambos os códigos – profissionais e das organizações – que não estão alinhados pelos mesmos pressupostos, já que vivemos num tempo em que se procura incutir uma certa moralidade assente no “politicamente correto”, como ilustra a passagem que transcrevo da proposta de modelo do Governoque referi:
“ Os colaboradores e demais agentes devem guardar absoluto sigilo e reserva em relação ao exterior de toda a informação, nomeadamente de factos e de decisões, de que tenham conhecimento no exercício das suas funções que, pela sua natureza, possa afetar ou colocar em ca usa qualquer interesse da (nome do serviço ou organismo), em especial quando aquela seja de carácter confidencial, nomeadamente, dados informáticos pessoais ou outros considerados reservados, informação sobre processos em curso, informação sobre competências técnicas, métodos de trabalho e de gestão de processos desenvolvidos pela (nome do serviço ou organismo), bem como a informação relativa a qualquer processo realizado ou em desenvolvimento, cujo conhecimento esteja limitado aos colaboradores da (nome do serviço ou organismo) no exercício das suas funções ou em virtude das mesmas.
Salvo quando se encontrem mandatados para o efeito, os colaboradores e demais agentes da (nome do serviço ou organismo) devem abster-se de emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social. O dever de confidencialidade mantem-se mesmo após a cessação de funções.”
Esta imposição de silêncio para o exterior não só indicia que afinal sempre há situações que não devem ser do conhecimento público, como mostra que se pretende anular os códigos deontológicos e as orientações que os profissionais recebem das organizações que regulam o seu exercício, relativamente ao modo como se devem comportar perante problemas que não são adequadamente resolvidos dentro do sistema/na própria instituição e, acima de tudo, é contrária a tudo o que devia ser incentivado no sentido de tornar o sistema transparente e acessível ao cidadão.
A Ordem dos Enfermeiros tem um código deontológico onde está explícito que o enfermeiro deve assegurar, por todos os meios ao seu alcance, as condições de trabalho que permitam exercer a profissão com dignidade e autonomia, comunicando, através das vias competentes, as deficiências que prejudiquem a qualidade de cuidados.À medida que as “vias competentes” se vão esgotando, os enfermeiros são apoiadospela sua Ordem na sua vontade de não pactuar com más práticas.É a própria Ordem que reconhece que, numa altura em que o contexto socioeconómico do País tem fortes implicações no funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, é importante monitorizar no terreno atradução desses cortes ao nível da qualidade da prestação de cuidados de saúde aos portugueses, convocando todos os enfermeiros a transmitirem à OE as situações que, tendo origem em medidas de restrição introduzidas nas várias organizações de saúde, se venham a traduzir em prejuízo para a qualidade da prestação de cuidados de saúde e de Enfermagem, assim como todas as situações que violem as regras éticas e deontológicas da profissão, tendo criado um espaço designado porEnfermeiros alerta pela Qualidade para receber as informações dos membros sobre situações reveladoras de dificuldades de acesso a cuidados de saúde / Enfermagem; de insegurança na prestação de cuidados; e violadoras do Código Deontológico do Enfermeiro. Recordaque um dos deveres dos enfermeiros consiste em «comunicar os factos de que tenham conhecimento e possam comprometer a dignidade da profissão ou a saúde dos indivíduos», além dos que «sejam suscetíveis de violar as normas legais do exercício da profissão».
É evidente a discrepância entre a filosofia que subjaz ao documento do Governo, com tiques que me recordam um certo “socialismo científico”, ou pior que isso, me lembram os segredinhos dos tipos de avental e martelinho, e a visão de uma Ordem profissional mais virada para a transparência e defesa dos interesses do cidadão e da profissão. É notória a tentativa de intimidar as pessoas, com imposições que mexem com a consciência e com os sentimentos de gente que cuida de gente. Não estamos a falar de empresas em concorrência em que a divulgação de informação pode comprometer os negócios, de organizações secretas em que o silêncio faz parte da brincadeira,ou de máfias que usam essa arma para dominar as pessoas; estamos a falar de serviços públicos pagos com o dinheiro de todos os contribuintes, e de direitos humanos.
A mensagem que o Governo passa na tentativa de silenciar os profissionais para o exterior é grave na medida em que, mesmo internamente,pode começar a vingar uma certa cultura de medo, apagamento econsequente alheamento/indiferença perante situações que colocam em risco o respeito pela dignidade dos doentes e dos próprios profissionais, clima que de resto já se insinua em muitos casos dentro das próprias instituições.
Os enfermeiros são confrontados nos locais de trabalho com problemas cada vez mais complexos, situações em que desejam realizar aquilo que aprenderam, que consideramser correto e que as próprias instituições propõem nas orientações internas. No entanto muitas vezes têm que fazer escolhas em situações que não dependem apenas de si – e estou a pensar nos cuidados que presta sob restrições de ordem financeira que se repercutem na falta de material, deficientes equipamentos, falta de segurança nos serviços por problemas logísticos, falta de pessoal em nº suficiente para assegurar cuidados de qualidade, hierarquias que pretendem unicamente assegurar os lugares que ocupam, tiques de autoridade, contratos precários, étc.–, algumas das quais colocam os profissionais perante autênticos dilemas.Estes acabam por se sentir impotentes e envolvidos em situações de conflito– consigo mesmos e com outros – pela pressão que sentem internamentee que lhe é imposta pelo sistema.
É aqui que têm que optar pelo silêncio ou pela defesa do melhor interesse do doente (e do seu próprio interesse, porque se o enfermeiro não estiver bem também não presta bons cuidados).
A tendência pode ser agir de forma incongruente com as convicções pessoais, quando estão em causa interesses e a própria integridade do profissional, ou assumir uma atitude de defesa de melhores condiçõesde trabalho e melhores cuidados, agindo com base em princípios éticos como a beneficência e motivados por valores, virtudes e padrões que emergem interiormente levando-os a defender o que consideram correto, independentemente dos riscos que isso possa acarretar para si mesmos e arcando com as consequências da suas ações, sabendo que estas podem resultar em efeitos adversos.
O que distancia o profissional de uma ou outra posição, são características pessoais ligadas também ao desenvolvimento socio moral, assim como o grau de cada conflito entre os padrões pessoais e os da organização o podem afetar, o medo de ser prejudicado, a falta de apoio dos pares ou da liderança. Quem se assume na defesa da qualidade dos cuidados tem que ter uma ação consistente com boas práticas, conhecimentos e competências para discernir sobre o que deve ou não ser feito, e ter vontade, coragem e confiança na defesa de práticas corretas que podem contrariar o status quo, não obstante a presença de forças que o podem desmoralizar ou desviar; há uma certa ética a desenvolver, competências culturais e profissionais, pois sabemos que o julgamento moral é influenciado ao longo do tempo pelo desenvolvimento pessoal, pela aquisição de conhecimentos, pela experiência e pelo ambiente (Kohlberg), o que nos torna cada vez mais aptos a usar a nossa consciência no agir baseado em valores e princípios morais, em vez de nos mantermos reféns da posição dominante no grupo/sistema.
Agir de acordo com o que é moralmente correto é fundamental para quem cuida de gente, especialmente mais vulnerável. Não é falar de ética por falar, é defender que quando o nosso trabalho assenta numa ética do cuidado é mais natural que sintamos a inquietação perante situações com as quais não nos sentimosconfortáveis, e é expectável que não consigamos ser coniventes com más práticas, que procuremos resolvê-las. Esta ética na enfermagem, ainda que em muitos casos seja o reflexo de um ideal de cuidados que pretendemos alcançar, está devidamente assinalada no código deontológico que o Governo pretende desvalorizar,e aponta para a essência da profissão,permitindo já que assumamos um compromisso que vai para além do que é a obrigação individual e conjuguemos o respeito por esses ideais com as virtudes que nos comprometem com o Outro. É este comprometimento que faz com que o enfermeiro exceda o cuidado mínimo e se obrigue, muitas vezes em situações geradoras de ansiedade e algum receio, na defesa de padrões mais elevados de excelência, não a dos discursos, mas de um cuidado verdadeiramente ético e humano.
A forma como nos posicionamos perante a dissonância entre o que se idealiza/exige/pretende que seja verdade mas que ainda não é, e a prática real e concreta dos cuidados, depende não só de características pessoais – e é compreensível que alguns tomem posições mais neutras -, mas também de particularidades dos locais de trabalho que vão desde a forma como se concretiza verdadeiramente a missão, visão e valores da instituição, os modelos de organização do trabalho e de prestação de cuidados, a forma como o poder está distribuído e é partilhado, a cultura de comunicação, o clima, a liderança.
Na verdade, desejaríamos que em vez de se promoverem estruturas organizacionais que favorecem ambientes de trabalho fomentadores do silêncio e da hipocrisia, da moralidade do politicamente correto, onde discordar, sugerir ou questionar é visto como uma impertinência, um gesto de conflito, seria mais útil repensar se a filosofia de cuidados prevista, orientada para o pessoal e também para a comunidade,compromete de facto os profissionais e responsabiliza realmentea própria instituição no sentido da melhoria da qualidade total, sendo que o primeiro deve mobilizar as suas competências para ajudar nesse sentido, e o segundo deve proporcionar as condições necessárias para que isso possa acontecer. E mais: em vez de tentarem fazer as pessoas de tolas, as instituições devem ser credíveis no sentido em que os profissionaisdeveriam sentir que existe uma concordância entre o que é proposto e divulgado e a realidade que eles vivenciam. Só aqui já estávamos a dar um passo gigante para a frente.
Depois disso, e em vez de existirem tentativas de impedir a inovação na gestão (transparência, prestação de contas, empoderamento e centralidade do cidadão,envolvimento dos profissionais, e tal…), tentativas de perpetuar modelos que não legitimam as competências em evolução dos profissionais vedando-lhes a possibilidade de expandirem a sua influência a áreas em mudança, em vez de tentarem transformar profissionais altamente diferenciados em trabalhadores à tarefa, numa lógica em que não é tida em conta a sua perspetiva do trabalho que realizam contando que produzam um determinado volume de tarefas que lhessão incumbidas, quando são pagos para fazer e não para pensar, abrindo-se caminho à insatisfação, desmotivação e inquietude, em vez disto tudo, estaríamos a dar um segundo passo gigante ao repensar adistribuição do poder nas instituições. Isso passaria por desmistificar o acesso à informação, por reequacionar o papel desempenhado pelos líderes e pelo apoio que estes recebem ou não dos liderados, por adequar os recursos disponibilizados ao pessoal, por criar oportunidades de desenvolvimento profissional e pessoal, pelo respeito da autonomia de cada profissão, por repensar como é feita a participação na tomada de decisão, pelo envolvimento dos profissionais em todos os aspetos que dizem respeito ao seu trabalho, e por uma avaliação 360 graus.
Por fim, e em vez de tentar silenciar as pessoas,de perpetuar esta espécie de ódio à expressão do pensamento individual, seria mais útil trabalhar os processos de comunicação e enquadrá-los numa lógica verdadeiramente ética, promovendo ambientes de trabalho amigos da qualidade, que não premiassem o silêncio e o “politicamente correto”, e onde quem fala não sofresse de mobbing, perseguição, sabotagem ou risco de afastamento de funções, represálias nos horários, transferência de serviço por “incomodar” os interesses instalados, étc. Uma mudança nesta cultura permitiria a resolução dos problemas o mais próximopossível dos eventos que lhes dão origem. Como isso não acontece,há um deslocar da discussão para o seio dos profissionais, e dali para fora da instituição na expectativa de obter a pressão necessária à sua resolução porque os profissionais não acreditam em quem permite que os doentes estejam permanentemente em risco, que prioriza os seus interesses pessoais, e em organizações incongruentes.