No último dia 17 de Março, a Assembleia Geral Ordinária da Ordem dos Enfermeiros realizada em Lisboa não produziu a esperada alteração estatutária por não ter sido votada, ainda que por margem mínima por 4/5 dos participantes.
Foi um momento descrito pela Bastonária Maria Augusta Sousa como “um momento importante de debate e partilha de experiências e opiniões“.
O Modelo de Desenvolvimento Profissional (MDP) que tem vindo a ser conceptualizado subitamente foi colocado em questão. O que está em cima da mesa é um projecto para a profissão que envolve a formação, a prática de cuidados e a investigação para os próximos anos.
O MDP é apresentado como vantajoso para cidadãos, enfermeiros, organizações educativas e de saúde, embora ainda só se conheçam os princípios-base. Está poderá ter sido uma das razões pelo qual ainda não tenha sido reunido o consenso necessário para que as alterações estatutárias necessárias ao novo MDP tenham sido aprovadas.
A OE parece já ter feito o Diagnóstico da Situação e parece pronta a influenciar os contextos através de um mandato social mais abrangente que o inicialmente proposto. Como se sabe a OE não tutela o ensino, mas com as novas alterações estatutárias poderá vir a influenciar de forma estruturante o acesso á profissão ao criar mecanismos que entre outras coisas pretendem o reconhecimento da qualidade da formação de base (por exemplo o muito falado período de exercício profissional tutelado que embora não esteja definido, começa a ganhar contornos através da analogia com a medicina com o nome que a própria OE lhe deu, Internato de Enfermagem).
As implicações de apenas está medida (e há mais) deixam antever uma deslocação de poder de regulação da profissão (afinal de contas o mandato social da OE), nomeadamente o mercado da formação por via do acesso á profissão. A própria OE na sua newsletter de Março admite que tendo o Mandato Social para regular a profissão de Enfermagem, não tem a capacidade de o fazer. E por isso, desenvolveu este MDP que leva á reposicionamento da OE no contexto socio-político da profissão.
Pouco se poderá discutir a legitimidade da OE para o fazer. Mas a OE corre riscos com este projecto de engenharia socio-profissional, pois as mudanças que se propõe fazer são tantas que poderá vir a repetir-se o chamado “Síndrome da Licenciatura em Enfermagem” , caracterizado pela falta de correspondência entre a mudança do “percurso profissional e académico” e a expectável maior autonomia dos cuidados de Enfermagem. A juntar ainda não assumido “Síndrome do Desemprego” (este mês apresentamos um artigo em destaque sobre o tema) temos que o discurso do quotidiano dos enfermeiros é identificável a sentimentos de desorientação e mal-estar. Estamos num período de transição, de limiaridade.
A proposta da OE pretende gerir a mudança, como sabemos, o panorama actual da saúde em Portugal é tudo menos estático. A natureza do próprio estado social está em transformação, por via do recuo do Estado em determinados sectores sem que isso implique uma perda de poder regulador no mercado. Ora vejamos, há ou não poder regulador quando o Ministério da Ciência e Ensino Superior aprovou dezenas de novos estabelecimentos de ensino da Enfermagem, ao mesmo tempo que o Ministério da Saúde racionaliza os serviços (que na sua precipitação se tem limitado em muitos casos ao fecho de serviços como urgências e maternidades). Como consequência, tendencialmente o sistema/mercado será inundado de enfermeiros em busca de um primeiro emprego que tarda e quando chega é longe de casa, com vinculação de curto prazo, dependente da um rede informal de recrutamento (o chamado facto C). A OE fala de “integração de opções individuais de desenvolvimento profissional com as necessidades das instituições” (vantagem nº 3 apontada ao MDP), mas neste cenário opções individuais são cada vez mais reduzidas, prevalecendo a falta de sentido pessoal..
Qualquer projecto de regulação (neste caso o da OE) depara-se com os seus próprios limites. O actual contexto social da modernidade parece carecer de racionalidade (uma das características vinculadas ao projecto da modernidade). Anthony Giddens compara a modernidade ao Carro de Jagrená. Esta metáfora de um veículo desgovernado, o qual não podemos controlar, mas também não temos como “saltar fora” traduz bem as consequências da modernidade.
Frequentemente se ouve dizer, que “andam a tramar os enfermeiros“. De quem é a culpa? De ninguém, em particular, mas de um sistema abstracto que não assume responsabilidade pelos seus actos. Giddens usou uma analogia deste processo com um mito proveniente da Índia, em que um carro celeste, o carro de Jagrená que, colectivamente como seres humanos, podemos guiar até certo ponto, mas que também ameaça escapar de nosso controle. O carro de Jagrená esmaga os que lhe resistem, e embora ele às vezes parece ter um rumo determinado, há momentos em que ele guina erraticamente para direcções que não podemos prever, esmagando os incautos ou alguns que se lhe atiram às rodas no cumprimento da sua fervorosa fé num além muito melhor.
Entrar para um curso para ingressar numa actividade que se ouve dizer que tem “falta de profissionais” e depois de 4 ou cinco anos, vir para o mercado de trabalho e demorar meses a encontrar o primeiro emprego com contratos de 3 ou 6 meses é ser esmagado.
Investir numa formação que custa milhares de euros do próprio bolso como o é a especialidade em Enfermagem e não ter certeza de no fim contribuir para o estatuto profissional e salarial, é deixar o MDP dependente da boa vontade de quem se quer atirar ás rodas do carro de Jagrená.
Um número significativo de enfermeiros, argumenta frequentemente que a única carta que parece restar aos enfermeiros para competirem é a redução da oferta de mão de obra especializada para aumentar o seu poder negocial. Ao mesmo tempo outras profissões do sector da saúde (fisioterapeutas, farmacêuticos, educadores sociais) têm vindo a exercer actividades que tradicionalmente inserem-se no conteúdo funcional da profissão de enfermeiro/a, em muitos casos por carência de número de profissionais ou da sua falta certificação/reconhecimento como especialistas em dada área. O que é bom em termos individuais pode não o ser para a profissão em termos estratégicos, não é estanho que no discurso da OE estamos aquém do rácio europeu de enfermeiro por habitantes e se diga que não é bom para os “cidadãos”. No contexto actual defender o interesse de algo abstracto como “a profissão” quando na verdade existem vários grupos dentro da profissão e interesses individuais legítimos que colidem com o colectivo podem vir a tornar-se a maior dor de cabeça para o consenso necessário no dia 14 de Abril.
Muita da falta de repercussão nas práticas e nas carreiras do reconhecimento académico é motivada por factores que fogem ao controle das organizações representativas dos enfermeiros, mas parece haver o sentimento unanime que a mudança pode ser gerida na direcção de uma coerência entre a identidade que enquanto classe profissional os enfermeiros reivindicam e aquela que lhe é atribuída.
O MDP é apresentado como um instrumento para a emancipação, coerência interna e autonomia da profissão, não estando ainda definidos os mecanismos com que ele será operacionalizado, desconhecendo de que forma os parceiros sociais (Ministério, instituições de saúde, de educação) olham para este MDP na articulação com os seus interesses. E um momento de decisão politica e como todas são sempre um acto de loucura pois não se controlam todas as variáveis.
A aprovação de alterações estatutária legitima o MDP e pode ser encarado como o assumir colectivo de um risco que perspectiva no futuro os anseios de ontem e de hoje. É por isso, que deve ser discutido com base da procura de uma maior autonomia nas práticas, mas também da sua articulação com o mercado da saúde e da formação.
Mais uma vez Lisboa é o palco das decisões para a Enfermagem Portuguesa. Infelizmente muitos são os que por desinteresse, vida profissional sobrecarregada, falta de recursos financeiros para participar em virtude da distância (os enfermeiros que ainda não encontraram o primeiro emprego, por exemplo). Foi dito na última AG que a OE disponibiliza meios de transporte para os interessados, embora essa informação não conste da newsletter enviada aos membros. Um dos pontos que alterar nos estatutos da OE poderia ser a possibilidade de voto à distância…