Início Opinião Colega Enfermeiro/a, aceita(s) o desafio?

Colega Enfermeiro/a, aceita(s) o desafio?

190
0

São narrativas que focam simples gestos que podem fazer a diferença na vida de outras pessoas, e por isso merecem ser partilhadas.

O ano que terminou foi, com certeza, de grande enriquecimento pessoal para cada um de nós; aconteceram muitas coisas nas nossas vidas, entraram e saíram pessoas, passámos por momentos mais ou menos críticos, celebrámos, chorámos, sonhámos, vivemos.

A profissão que abraçámos tem a sua quota parte nas experiências que a vida nos proporciona, no lugar em que nos coloca perante o Outro, nas situações em que nos envolvemos, em tudo o que fazemos. Ser enfermeiro já não é apenas ter a profissão tal…; acaba por ser uma maneira de estar na vida. Concordam?

Se sim, concordarão também que é preciso separar o trabalho do resto da nossa vida, especialmente no que toca às misérias humanas que por nós passam, ao grande sofrimento das pessoas, às (nossas) incapacidades para resolver todos os problemas, às dissonâncias entre a realidade e as intenções, aos contextos organizacionais por vezes problemáticos, à desvalorização da profissão, etc.

Mas não é fácil esse exercício de estabelecer limites. Escolhemos uma profissão intensa que exige muito de nós, e densa porque também nos dá muito de volta, e viver as vertentes humana e relacional como se vive na enfermagem faz com que sejamos uma e única pessoa: o que nós somos, os nossos traços de personalidade, a nossa educação, os nossos valores e princípios, as virtudes que trabalhamos ao longo da vida, o nosso dia a dia, transparecem no trabalho e vice-versa.

Então há uma espécie de intercâmbio entre o que eu sou e vivo, e o que faço como profissional. Por causa desta interligação, parece que nunca nos conseguimos abstrair do facto de sermos enfermeiros. São recorrentes as memórias de situações, umas mais trágicas, outras mais cómicas, que habitualmente partilhamos uns com os outros; faz parte da nossa forma de estar, brincar com coisas sérias à nossa maneira, mas é preciso que assim seja para nos distanciemos emocionalmente de casos que de algum modo nos impressionaram.

Há outras situações que nos sensibilizam, nos obrigam a refletir, a tomar verdadeiramente consciência de que a nossa intervenção decorre enquadrada numa relação terapêutica com o doente e família e é muitas vezes ao nível da comunicação que alguns de nós falhamos. Estando numa posição de maior poder em relação ao doente, podemos tender a exagerar dessa circunstância, do facto de estaremos em “nossa casa”, de termos uma farda vestida, de o doente se encontrar muitas vezes na posição de deitado e nós em pé, despido, sem referências por perto, de se encontrar mais vulnerável, debilitado e diminuído para o exercício da sua autonomia. Sabemos disto e estamos a trabalhar para melhorar. Perante as oportunidades e ameaças que a envolvente nos coloca, temos seguramente que olhar para a profissão e discutir os nossos pontos fracos para evoluirmos no desempenho do nosso papel social, mas não chega focarmo-nos no que está mal; é preciso valorizar o que se faz bem, divulgar, partilhar com a sociedade, com os colegas, com todos.

É o que me proponho (começar a) fazer nas três histórias que aqui trago: a primeira passou-se comigo, no papel de enfermeira; a segunda observei-a como utente; a última foi-me contada por uma pessoa amiga. São narrativas que focam simples gestos que podem fazer a diferença na vida de outras pessoas, e por isso merecem ser partilhadas.

Improviso à janela [1]

Numa das missões humanitárias em que participei, na Guiné Bissau, o meu trabalho era na gestão da farmácia e aprovisionamento, no socorro a feridos de guerra que se encontravam em casa porque os serviços de saúde não tinham pessoal nem material, no apoio diário ao serviço de tisiologia, na realização de consultas de saúde em aldeias, na vacinação em massa contra a meningite, na campanha contra desnutrição de crianças, na educação para a saúde sobre doenças de transmissão sexual, étc.

A ONG a que pertencia não tinha capacidade para apoiar todos os serviços do hospital, o que suscitava comportamentos (de luta pela sobrevivência) impensáveis em Portugal, desde familiares a roubar os soros já em curso de uns doentes para os seus, a retirarem ligaduras de doentes para levar para outros serviços, étc.

O hospital não tinha água nem luz; camas em mau estado e poucas, com cartões a fazer de colchão; muita gente no chão. Alimentação? Roupa? Higiene? Eram os familiares que tratavam disso. Os cuidados prestados pelos enfermeiros locais eram pagos no ato pelo doente/família; se não houvesse pagamento, não havia cuidados. Mas não é isto que pretendo contar.

Quero contar-vos que no meio de tanta adversidade, ainda foi possível intervir em situações que nos marcam para sempre e nem sabemos porque é que o fizemos.

O serviço de obstetrícia era o único do hospital que tinha a porta para o exterior fechada e onde nós não tínhamos permissão para entrar. As situações mais complicadas é que recorriam ao hospital: anemias graves, roturas uterinas pela desnutrição, e quem fazia as cesarianas era o “operador”, um enfermeiro de experiência feito. Os requisitos para a cesariana eram vergonhosos, mas é assim a guerra. (Um dia conto-vos o que é que cada mulher tinha que entregar para ser operada…)

A alta do serviço era paga pela família; quem não pagava transitava para uma sala onde ia ficando até a família reunir a verba para pagar ao serviço – as “gasosas”.

Ora, é fácil perceber que na primeira brecha que se abrisse nós tentaríamos ali entrar para ver o que lá acontecia. Por isso é que a presença dos enfermeiros nestes contextos (e noutros) incomoda; somos também, mercê da nossa (formação) ética e deontológica, testemunhas do que se passa no terreno e desse papel não nos podemos demitir.

A oportunidade surgiu quando uma delegação de políticos portugueses foi fazer uma visita ao hospital e nos juntámos à comitiva. Estava tudo composto como era de esperar (cá é igual…), mas os olhares não enganavam… cada vez mais me convenço que “quem vê caras, vê corações” [2]. Enquanto a comitiva se deslocava com sorrisos e discursos de ocasião, reparei numa rapariga muito magra e com um olhar triste, que parecia querer comunicar comigo, mas talvez não pudesse…

Fiquei para trás e perguntei-lhe como estava, só nós as duas ali, rapidamente. Ela disse-me de cabeça baixa que tinha feito “a operação” (levantou o pano que a cobria e vi a ferida operatória da cesariana, a descoberto e a babar pus) e o bebé tinha morrido; a família já não conseguia pagar os tratamentos e não tinha como pagar a alta.

Disse-lhe para estar na janela ao meio-dia.

O “passeio” terminou. Os políticos abalaram. A porta fechou-se.

Contornámos o edifício e ao meio dia estávamos na janela. Improvisámos ali mesmo uma enfermaria. Demos-lhe compressas para desinfetar e tapar a ferida. Explicámos que todos os dias, àquela hora, iriamos lá fazer o tratamento e levar comida. Quando fosse possível tratávamos da alta. Pedimos que pusesse o braço fora da janela e administrámos, ali mesmo, ampicilina 1gr endovenoso; demos-lhe comida e comprimidos anti-inflamatórios, vitaminas, ferro e analgésico, que tomava à nossa frente, na “janela improvisada”.

Isto repetiu-se três dias. Depois de pagar a alta, foi com uma caixa de papelão à cabeça com alguma roupa, medicamentos e comida que também conseguimos arranjar, e lá iniciou a longa caminhada a pé, de regresso à aldeia, vestida com panos coloridos e um sorriso tímido; olhou para trás duas vezes e acenou um adeus, um agradecimento, a cada uma das duas enfermeiras.

Só nos Pertence o Gesto que Fizemos [3]

Eu estava, como utente, sentada num corredor de um serviço de consultas num hospital em Lisboa. Chegou uma enfermeira com uma doente em maca, para um exame ou para uma consulta, não sei. Vinha de outro hospital.

Pouco depois de ali estarem, a senhora disse à enfermeira que precisava de ir à casa de banho. A colega hesitou. Olhou à volta. Percebeu-se que não conhecia o serviço. Havia ali ao pé um recanto um pouco mais escuro do que o corredor. Duas portas davam acesso a casas de banho.

Percebi que a enfermeira dizia à senhora que não havia nenhuma contraindicação para se levantar e andar, e até estava ali para a ajudar, mas… as casas de banho por vezes estão pouco limpas… e a senhora estava descalça.  

Estavam vários doentes e acompanhantes, novos, velhos, sentados em cadeiras pelo corredor afora; olhavam para a doente e mais intensamente para a enfermeira. Era como se de repente tivesse surgido ali um assunto de interesse. Fez-se um silêncio. Os olhares eram de expectativa. Parecia que se escrutinava a competência da profissional para decidir algo tão simples.

A enfermeira trocou algumas palavras com a doente, mas não conseguíamos perceber porque falavam uma para a outra. Até parece que havia ali uma cumplicidade (e havia). Depois vimos que a ajudou a sentar-se na maca, com as pernas pendentes, e, enquanto a senhora se apoiava no seu ombro, descalçou as socas e calçou-as à senhora. Apoiou-a até que esta ficasse em pé e firme. Deu-lhe um jeito rápido no cabelo que estava todo despenteado. Perguntou-lhe se estava tudo bem. Aconchegou o robe e ajudou a juntar as pontas do cinto para ajustar.

A senhora foi à casa de banho enquanto a enfermeira aguardava junto à maca e lhe acenava: “estou aqui, qualquer coisa…”. Quando regressou, voltou tudo ao normal.

Não é que se tivesse passado algo de especial, mas senti que aquelas pessoas que ali estavam sentadas – seriam umas dez, doze, pouco mais – ficaram surpreendidas com o gesto que aquela enfermeira teve, de se descalçar para emprestar as socas à doente. Tão simples quanto isso. Foi ela que o fez, pertence-lhe. Os olhares eram de reconhecimento. Sentiu-se.

Põe quanto És no Mínimo que Fazes [4]

Há dias, em conversa com uma pessoa amiga, contou-me como ficou sensibilizada com uma situação passada num dos setores do serviço de urgências onde trabalho – no balcão geral.

Ali existe uma sala de espera cujas condições deixam bastante a desejar em termos da privacidade e do conforto dos utentes, particularmente dos que aguardam várias horas em maca; a maior parte são pessoas já idosas, com problemas socio familiares, e também doentes.

Nem sempre se consegue gerir o espaço físico de modo a acomodar todas as pessoas da melhor maneira. Se no verão o calor quase faz com que desfaleçam, no inverno é particularmente penoso o frio e as correntes de ar.

Chegou (mais) uma pessoa idosa proveniente de um Lar e já não havia espaço para posicionar a maca numa zona abrigada. Acabou mesmo por ficar numa corrente de ar.

Pela descrição que me foi feita, a sala estaria apinhada de gente, doentes com todas as prioridades clínicas e acompanhantes, em cadeiras de rodas, macas, a pé.

A profissional que acompanhava a doente manteve-se junto a ela e optou por abriu a bata e o casaco que tinha vestido para fazer uma barreira de proteção contra o vento e o frio, protegendo assim, da melhor maneira que conseguiu, a pessoa que estava ao seu cuidado na maca. E assim aguardou. As pessoas que lá estavam viram e apreciaram este gesto tão singelo, mas tão nobre, que faz suspeitar que quem assim procede põe com certeza tudo quanto É no mínimo que faz.

…/…

Em todas estas histórias há carinho, delicadeza, consideração, cuidado, desvelo, diligência, por parte de quem cuida. Solicitude. São narrativas muito simples que ilustram justamente que os profissionais são tão humanos como aqueles de quem cuidam. E mostram que há olhares atentos e corações ao alto.

No meio do que não está tão bem, sobressaem estes pequenos e quase insignificantes gestos, que são muitos mais, e que juntos podem contribuir para realçar o valor da enfermagem.

Como?

Através da construção de narrativas simples, que nos ajudam a refletir sobre atitudes que podem mudar a forma como nos vemos a nós mesmos como enfermeiros e pessoas; com a criação de um acervo de relatos positivos, bons exemplos do nosso trabalho, e divulgá-lo. 

…/…

É este o desafio que aqui deixo para 2017.

Enviem-me as vossas narrativas. Serão compiladas e publicadas em livro. Decidiremos em conjunto que fim dar ao trabalho que realizarmos.

Colega Enfermeiro/a, aceita(s) o desafio?

Votos de um Ano de 2017 fantástico, cheio de sucessos pessoais e profissionais.

Vanda Veiga

vandaveiga@hotmail.com


[1] Cecília Meireles

[2] J A Gaiarsa

[3] Vergílio Ferreira

[4] Ricardo Reis

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui