Início Opinião Fórmula do Diabo

Fórmula do Diabo

243
0
http://www.publico.pt/local-lisboa/jornal/hospital-de-faro-acabou-com-as-macas-no-corredor-do-servico-de-urgencia-25922300#/1
Macas na Urgência
http://www.publico.pt/local-lisboa/jornal/hospital-de-faro-acabou-com-as-macas-no-corredor-do-servico-de-urgencia-25922300#/1

A verdade é que os doentes que permanecem em macas, internados ou não nos corredores de serviços de urgências, recebem cuidados globalmente deficitários. Especificamente em relação à enfermagem, por muito que os enfermeiros se empenhem, é evidente que muitos cuidados básicos de que esses doentes necessitam não são adequadamente prestados ou não são mesmo prestados de todo.

 Agradeço o convite que o FE me dirigiu para dar o meu contributo a este espaço de opinião. As ideias que exprimo refletem o sentido que procuro dar ao meu trabalho como enfermeira e são, ao mesmo tempo, desafios à reflexão e discussão sobre tópicos que interessam à enfermagem.

O tema que escolhi para a minha primeira intervenção tem a ver com a sobrelotação dos serviços de Urgência, especificamente de doentes que permanecem em macas nos corredores pelas mais diversas razões.

Este é um fenómeno que aumenta a morbilidade, a mortalidade, os custos e tem outros impactos negativos nas instituições, nos doentes e no pessoal.

É uma situação crítica a nível internacional. Da Austrália ao Zimbabué, existem doentes em excesso nos SU, a começar nas salas de espera e terminando por corredores e cubículos mais ou menos improvisados onde permanecem em macas durante dias, semanas, meses…

Abundam na rede global editoriais, notícias, alertas vários sobre o problema, como estes aos quais achei alguma piada:

“… no hospital X começa a ser recorrente estarem 10 a 12 doentes em maca, à espera de cama.” (Austrália)

“… o pessoal teve que criar uma zona com 6 macas, divididas com cortinas, para dar resposta à falta de camas em internamento.” (Canadá)

Na Escócia, uma instituição oficial publicou inclusivamente um pedido de desculpas pela situação escandalosa de os doentes terem esperado 18 horas por cama. Ainda no RU foi divulgado nas notícias que num determinado hospital os doentes esperaram 4 horas por uma cama e 5% tinham que esperar mais de 8 horas!

Na Irlanda foi criado uma espécie de boletim polínico desenvolvido por uma organização de enfermeiros, no qual se anunciam diariamente quantos doentes, em todos os hospitais, estão em macas e/ou cadeiras de rodas, indicando também os hospitais que apresentam as situação mais e menos favoráveis.

Há inclusivamente pesquisas que procuraram saber as preferências dos doentes em relação ao local em que permanecem em maca, e mais de metade das pessoas preferem ficar num dos cubículos que alguns serviços de urgência têm, em vez de permanecerem no corredor propriamente dito.

Em Portugal, a carta dos direitos do doente internado adverte que “não é admissível, salvo por período curto nunca superior a 24 horas, a permanência de doentes em macas durante o internamento.” A realidade dos últimos anos não reflete a letra da lei e, entre muitos outros, podemos encontrar também referência na comunicação social a várias dessas situações, como:

“Mais de quatro mil quedas de doentes em macas”

“Doentes em macas nos corredores no Hospital de Cascais”

“Seguro impressionado com doentes em macas nos corredores” – Faro

“Idosa viveu três semanas em maca da urgência” – Porto

“Serviços de internamento cheios obrigam a pôr doentes nos corredores do Sta. Maria”

(…)

A verdade é que os doentes que permanecem em macas, internados ou não, nos corredores de serviços de urgências, recebem cuidados globalmente deficitários. Especificamente em relação à enfermagem, por muito que os enfermeiros se empenhem, é evidente que muitos cuidados básicos de que esses doentes necessitam não são adequadamente prestados ou não são mesmo prestados de todo.

Um dos desafios dos enfermeiros é justamente responderem às necessidades destes doentes, ao mesmo tempo que atendem novos casos, ainda assim correndo o risco de não prestar os cuidados verdadeiramente urgentes em tempo útil.

Outro desafio é lidar com o facto de que estes são doentes que necessitam de cuidados de internamento, com uma complexidade diferente, de continuidade, cuidados diferentes daqueles para os quais está vocacionado um SU, não usufruem das condições que teriam numa enfermaria, quer ao nível do ratio enfº doente quer das condições de trabalho em zonas superlotadas ou mesmo dos recursos materiais (in)disponíveis.

Trabalhar nestas condições aumenta os riscos para a segurança do doente e dos enfermeiros e a probabilidade de se cometerem erros ou sofrer acidentes, é maior com a sobrecarga de trabalho, ambiente confuso, solicitações simultâneas, aumenta o stress e frustração dos enfermeiros, com riscos para a sua saúde física e mental.

A satisfação dos doentes, familiares e do pessoal diminui, mas também me surpreende ao mesmo tempo que não surjam mais reclamações acerca das condições em que os doentes se encontram; isso talvez se deva ao facto de muitos não terem quem reclame por eles, outros não conseguirem expressar o que sentem, ou ainda porque nem tudo é claro para quem não vivencia todos os momentos do dia naquelas circunstâncias.

Entre muitas outras limitações, estes doentes “internados” nos corredores não têm acesso a campainhas de chamada, estão expostos dia e noite a luzes diretas e correntes de ar, barulho habitual das zonas de circulação que são os corredores, não têm acesso a casas de banho; não beneficiam de levante, não podem ter os seus pertences, estão privados da família e visitas; as macas são frequentemente estreitas demais para mobilizar os doentes mais obesos, muitas não têm travões nas rodas, com colchões demasiado finos o que torna o leito desconfortável e de risco pois podem bastar 3 horas para que se desenvolva uma zona de pressão; o espaço exíguo e a pressão para receber mais uma maca obrigam a reduzir o espaço entre os doentes ao ponto de existir contacto físico entre macas; a privacidade é relegada para segundo plano.

Muitos destes doentes, senão a maioria, são idosos, fisicamente debilitados e emocionalmente fragilizados, com elevados graus de dependência, acabando alguns por falecer sem qualquer dignidade.

As razões desta sobrelotação não têm só a ver com problemas internos dos serviços de urgências nem com a diminuição de camas disponíveis nos internamentos ou com a falta de escoamento dos doentes com alta; também não se devem apenas à procura em situações de urgência que eventualmente não justifiquem idas ao hospital, assim como não estão relacionadas só com insuficiências nos cuidados de saúde primários ou com a falta de resposta em cuidados de saúde das alternativas existentes na comunidade. Porém, não sendo fatores isolados, a redução de camas nos internamentos e do número de enfermeiros nas urgências, são elementos de uma fórmula diabólica que permite perpetuar as macas nos corredores e quiçá fazer disso uma situação normal, banal.

Qual é o papel da enfermagem na resolução do problema? Não conheço – mas admito que exista – alguma tomada de posição de algumas organizações representativas dos enfermeiros, com sugestões para a resolução do problema. Se assim não for, penso que é altura de a enfermagem se chegar um pouco mais à frente e documentar a realidade dos serviços de urgência em Portugal, propondo, por exemplo, critérios para determinar quais são os doentes menos prejudicados para permanecer em maca: pessoas estáveis, orientadas, sem estarem a receber cuidados de maior complexidade, sem requererem monitorização permanente de sinais vitais e estado de consciência; realizar uma discussão sobre os ratios enfº doente nos serviços de urgência, especificamente nos que têm doentes em macas nos corredores, quer seja em situações de pico de afluência, quer seja permanentemente como já vem sendo habitual; discutir amplamente e também com os enfermeiros da prestação de cuidados a redefinição do papel do enfermeiro nos cuidados de saúde primários, nos serviços de urgência e nos serviços de internamento.

Como diz o ditado, quem cala consente,  eu acrescentaria o óbvio que é, independentemente das pressões e ideologias políticas, dos interesses pessoais, económicos e outros lobbies que cerceiam o desenvolvimento do sector público da saúde, é moralmente reprovável que se admita, consinta e pactue com situações degradantes para a dignidade das pessoas, que obrigam a aligeirar cada vez mais o peso do código deontológico na nossa prática clínica.