Naquele fim de turno (turno com fraca afluência) de uma tarde de Setembro, ainda no rescaldo da Expo 98, estavamos eu e a minha colega Paula, na sala de triagem da Urgência Pediátrica do H. S. Bernardo, conversando acerca do concerto do Pedro Abrunhosa, a que tinhamos assistido na Praça Sony, quando nos entra pela sala dentro uma senhora muito ansiosa, gesticulando, trazendo nos braços um bebé pequeno, que gemia, embrulhado num xaile imundo, que trasendava...
Esta situação não seria de estranhar (nas Urgências Pediátricas estas entradas são comuns) não fora a referida senhora vir acompanhada por um agente policial, que soubemos, mais tarde, ter sido ela própria a chamar.
A senhora identificou-se como sendo vizinha da criança, que podemos chamar de Beatriz (Bea). A Bea tinha somente dois meses de idade.
Contou-nos que a mãe se tinha ausentado para ir tomar um café e deixara a criança na barraca onde coabitavam a mãe da Bea, o pai e um irmão com 4 anos.
A vizinha, referiu que a Bea chorava e gemia muito, não sabia se era de fome ou de frio e fora por essa razão que se encheu de coragem e arrombou a porta da barraca, onde morava a Bea, retirando dali a bebé, achando por bem chamar a polícia.
Entretanto, entramos em contacto com o Pediatra, fomos observando a criança, aparentemente emagrecida, pálida, que gemia a alto e bom som, deparamos com uma situação arrepiante: a criança tinha os dedos da mão esquerda, ensanguentados, com vestígios de marcas de dentes e um terço do dedo mindinho tinha sofrido, supostamente, uma valente mordedura, a pontos de ter sido arrancado.
Inquirimos a senhora, que nos alertou para o facto da existência de ratazanas enormes na habitação da Bea. Dirigi-me com a Bea, seguida da vizinha, para o gabinete médico, para a babé ser observada. O Pediatra, confirmou a suspeita.
Claro que estavamos perante um caso de negligência. Que tipo de mãe deixaria uma criança tão pequenina sozinha naquelas condições, a ponto de servir como refeição às ratazanas?
A Bea ficou internada no Serviço de Pediatria, à responsabilidade de uma Comissão de apoio intrahospitalar, mas após ter alta voltou para casa. Após este episódio ainda sofreu mais alguns internamentos, para posteriores cirurgias correctivas. Contudo ainda dois desses internamentos (GEAs), tiveram como causa a negligência dos pais (o pai era álcoolico e a mãe jovem, era extremamente imatura ).
Acabou por ser entregue à avó paterna que tinha uma boa relação afectiva com ela e boas condições económicas para poder cuidar devidamente da Bea. Voltamos a vê-la quando ela tinha três anos na companhia da avó. Parecia uma criança feliz, mas até que ponto é que ela seria verdadeiramente feliz? Se tinha sido fruto de uma família destruturada e sofreu na pele essa experiência?
São questões, às quais me foi diícil responder naquele preciso momento ...
Saudações, Joana